terça-feira, 20 de outubro de 2015

Crianças no Controle: Mudanças na estrutura familiar e a crise na autoridade dos pais


Olá, 

Transcrevo a seguir uma matéria minha que saiu na Revista "Grandes Temas de Conhecimento: Psicologia" Número 19, publicada pela Mythos Editora, em Maio de 2015. 

ALGO ACONTECEU NAS RELAÇÕES ENTRE PAIS, ADULTOS EM GERAL, E AS CRIANÇAS, QUE DESAUTORIZA OS ADULTOS DE DAREM “ORDENS” OU MESMO LIMITES AOS PEQUENOS, MÉDIOS E GRANDES FILHOS.

Nesse artigo, vou destacar o papel da cultura e das mudanças sociais e materiais como uma fonte de influência na mudança do lugar de autoridade dos pais em relação às crianças e na presença de outras instâncias moderadoras da relação entre os pais e os filhos que atravessam esse deslocamento de papéis.

Pretendemos, também, traçar um campo para refletir as alterações subjetivas, não só em relação aos filhos, mas em relação aos projetos pessoais dos sujeitos, que acabam se refletindo no desejo de serem pais. O conceito de autoridade se define por: “1. Direito ou poder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões, de agir, etc. 2. Aquele que tem tal direito ou poder. 3. Os órgãos do poder público. 4. Aquele que tem por encargo fazer respeitar as leis; representante do poder público. 5. Domínio, jurisdição. 6. Influência, prestígio; crédito. 6. Indivíduo de competência indiscutível, em determinado assunto”. Essa definição do Dicionário Aurélio, nos ajuda a entender o que constitui o conceito de autoridade, que vamos abordar no sentido de seu declínio.  

A escola passou a ser responsável por transmitir o que antes era adquirido por meio do convívio familiar, como as “boas” maneiras, princípios morais e até educação sexual.

Christopher Lasch, em seu livro A cultura
do narcisismo, discute essas questões
no contexto norte-americano. Vamos utilizar
suas reflexões considerando que a cultura
norte-americana acabou por influenciar os
modos de produção e, consequentemente, de
subjetivação no mundo ocidental. Lasch pensa
na reprodução humana como na reprodução
da força de trabalho. Tanto a reprodução
em si, quanto os cuidados em relação aos
jovens, sempre estiveram centrados no seio
da família, porém o sistema de socialização
da produção, ou seja, a produção em massa,
também chamada “industrialização”, acabou
se apropriando também desses aspectos e das
funções socializadoras do lar que, após a II
Revolução Industrial, foram colocadas sob a
alçada do Estado.

O que anteriormente era adquirido por
meio do convívio com os familiares, passou a
ser recebido pela escola: “boas” maneiras, princípios
morais e até educação sexual. Mudanças
sociais, políticas e industriais fizeram com que
a escola assumisse responsabilidades antes assumidas
pelo lar, como o treinamento físico,
mental e social. Na república social, a criança
é vista como um futuro cidadão e, portanto, é
responsabilidade do Estado, e não de seus pais.
Seu bem-estar é de interesse do Estado, que
deve evitar os danos que os pais possam causar
a seus filhos. E aqui, o acesso do Estado a essas
crianças se dá por meio da escola, que assume,
nessa política, o papel de autoridade máxima
em relação aos filhos. O Professor passa a ser
Educador.

Os trabalhadores, pais dessas crianças,
são postos de lado e obrigados a trabalhar
para o Estado. O bem-estar de seus filhos é
“garantido” por essas instituições substitutas
e não há opção, pois o Estado coloca-se como
responsável por eles, em nome de um desenvolvimento
saudável para essas crianças, visando ao bem da sociedade,
como um todo.

O trabalho infantil foi proibido e a custódia
da criança era dada à escola. O Estado via
nos lares desfeitos uma fonte de jovens delinquentes
e ameaçadores. A autoridade dos
pais sobre seus filhos dependia, agora, do desejo
de esses pais em cooperar e em obedecer
aos tribunais de menores, caso contrário,
as competências do sujeito, como pai, seriam
questionadas e a convivência com sua prole
impedida.

O movimento por melhorias do lar possui grandes
contradições, pois, ao mesmo tempo em que instrui
os pais no cuidado com os filhos, dá as costas a esses
pais e toma essa função para si.

Os reformistas concordavam que a família
promovia uma mentalidade restrita e
desfavorável ao desenvolvimento da criança,
levando-os a supor que agentes externos
deveriam substituí-la para o bem da criança.
Agentes, inventados para assumir o papel dos
pais que fossem considerados inadequados,
passaram a educar e formar as crianças, sob
a tutela do Estado.

Nesse contexto, diz Lasch, surgiu também
a chamada “educação de pais”, promovida
pelo Estado por agentes especializados na
criação de crianças, para gerar melhorias
na qualidade do cuidado dado à criança na
família. A escola assumiu um papel mais extenso
– o de cultivar na criança a socialização
fora do âmbito familiar.

O movimento pela melhoria do lar
passou por contradições enormes, pois, ao
mesmo tempo em que buscava instruir os
pais nos cuidados a serem dados aos filhos,
dava as costas a esses mesmos pais, tomando
a frente nessa função. Esse movimento, que
surgiu como parte de um esforço mais amplo
de civilizar as massas, atingiu o cerne da estrutura
familiar, desautorizando maciçamente
os pais, em sua relação com os filhos.

Segundo Lasch, especialistas de diversos
campos incidiam sobre a família e retiravam
as crianças dos lares ditos “impróprios”,
impondo substitutos às figuras parentais. Percebiam,
porém, que apesar dessas ações, as
crianças continuavam “fiéis” aos pais de origem.
Começou-se, então, a pensar que aquelas
famílias, consideradas desestruturadas e
ameaçadoras para as crianças, ofereciam a
elas algo que o lar adotivo não podia dar .
A ideia, então, tornou-se “salvar” não
mais a criança isoladamente, mas toda a família
“desestruturada”, buscando, também, um
modo de civilizar as massas. Os médicos passaram
a atacar os métodos tradicionais de cuidado
com as crianças. Tiravam aos poucos a
confiança dos pais em relação à sua capacidade
de cuidar de seus filhos e iam colocando-se
no meio do caminho, com seus conhecimentos
técnicos supostamente mais adequados.
Com o advento das novas formas de
controle de natalidade, os pais se liberaram
da carga de criar filhos indesejados, mas, ao
mesmo tempo, surgia-lhes uma espécie de
obrigação de fazer com que os seus filhos se
sentissem desejados o tempo inteiro.

Nos anos 1940, a ideia contrária à anteriormente
defendida pelos especialistas aparece:
agora, os pais deveriam voltar a confiar
em seus instintos, no que diz respeito à
criação dos filhos. Os especialistas se deram
conta de que seus conselhos haviam minado
a confiança dos pais e chegaram à conclusão
de que não deveriam culpar exclusivamente
aos pais pelas faltas de seus filhos.

Os pais modernos confiam numa forma prescrita
pelos especialistas para criar seus filhos como os
“vencedores” que a sociedade exige.

No discurso dos pais, aparecia a sensação
de ter falhado em desempenhar o seu papel
como os seus próprios pais haviam feito,
sem saber o que poderiam ter feito diferente.
Esses pais temiam repetir os erros de seus
pais e, por isso, a opinião dos especialistas
virou regra de conduta na criação. O antigo
modelo de autoritarismo era abominado entre
os pais modernos e a permissividade era
agora mais comum.

A desvalorização da paternidade, segundo
Lasch, veio dessa transferência de funções
da família para organizações especializadas.
As habilidades técnicas, que o mundo
industrializado exige dos profissionais, fazem
com que os pais tenham muito pouco o que
levar do cotidiano de seu trabalho para os filhos,
além do amor. Essa situação promove
uma separação, cada vez maior, entre o mundo
do adulto e o da criança, e dificulta, cada
vez mais, as identificações psicológicas fortes
dos filhos com seus pais.

Os pais modernos confiaram em um
jeito prescrito pelos tais especialistas para
lidar com seus filhos e têm um compromisso
com uma ideia de parentalidade perfeita
– criar os filhos “vencedores” que a sociedade
contemporânea exige. O sentimento parental
não é espontâneo, mas idealizado, e o cuidado
que os pais têm para com esses filhos é
exagerado, mecânico, sufocante e esvaziado
do investimento libidinal genuíno.

A atenção da mãe apoia-se tão fortemente
na visão dos especialistas, que não
passa a sensação de segurança aos filhos.
Ambos os pais buscam, na família, um refúgio
ao mundo externo, que julgam ameaçador. O
que eles não percebem é que os padrões familiares
são oriundos, e constantemente reforçados,
pelas condições externas. Segundo
Lasch, o declínio da autoridade parental reflete
o declínio do superego na sociedade, ou
seja, uma diminuição da função paterna, que
dá limite, protege e breca os instintos nos filhos,
criando uma geração sem autodomínio
e sem freio, permissiva, que vive em função
dos prazeres do consumo exagerado.

Voltamos aqui a pensar que as mudanças
na família levaram a uma mudança no
conteúdo do superego, pois, com o fracasso
da autoridade dos pais, o superego dos filhos
mantém-se colado às imagens arcaicas dos
pais, ou seja, esse superego permanece punitivo
e severo sem flexibilização. Um clima
social de permissividade com um superego
severo como aquele da infância, resulta num
descontentamento e em modos depressivos
de subjetividade.

A abdicação da autoridade parental
intensifica, ao invés de diminuir, o medo de
punição que a criança tem, porque suscita
pensamentos de punição muito severos, daquela
fase primitiva. As experiências com a
autoridade externa complementam o treinamento
do cidadão, mas o controle social não
promove uma alteração no superego primitivo.
Coisa que só acontece nas relações familiares,
onde o vínculo é supostamente incondicional,
o que significa que independe
de um comportamento bom ou mal, mas que
é atravessado por eles e pelas consequências
deles.

Vemos, assim, que a evolução da sociedade
pós-Segunda Revolução Industrial
reformulou padrões de convívio familiar e
de condutas parentais por meio da especialização
dos cuidados com a criança e do afas-
tamento dos pais da convivência com seus
filhos. A ampliação da jornada de trabalho e
a retirada da responsabilidade da família em
relação à educação e à socialização primária
das crianças tiveram um enorme efeito de
desvalorização da autoridade parental que
abalou a autoconfiança dos pais como cuidadores
efetivos de sua prole.

“Este movimento de dar o controle às crianças, porém não é sem retorno, muito pelo contrário, já tem sido alterado e questionado pelas famílias e pela nova geração de profissionais que auxiliam e trabalham em parceria com estas famílias.”

Esse movimento de dar o controle às
crianças, porém, não é sem retorno, muito
pelo contrário, já tem sido alterado e questionado
pelas famílias e pela nova geração de
profissionais que auxiliam e trabalham em
parceria com essas famílias. Os novos pais
procuram mudar a natureza de suas relações,
colocar-se novamente como aqueles que sabem
o que deve ou não acontecer na conduta
de seus filhos e nas relações com eles, ainda
que com muito custo e com dúvidas e algumas
vezes questionando-se de estar fazendo
a melhor coisa, o que é comum que aconteça
depois de tanto tempo de questionamento sobre
sua própria condição em tomar as rédeas
da educação moral de seus filhos.

É imprescindível que os pais possam
reaver seus direitos parentais e terem dessa
maneira a possibilidade de se relacionar de
forma mais saudável com seus filhos, sem
modo de lhes dar o limite, limite este que é
fundamental e fundante para gerar crianças
e adolescentes que possam vir a se tornar
adultos seguros, confiantes e felizes, por
terem nos pais e responsáveis esse espelho
de segurança, de alguém que não lhes deixe
de colocar em risco, que lhes promova o
acolhimento e também a cobrança, a briga e
a bronca quando estiverem ultrapassando e
testando esses limites. Só assim as crianças
terão a confiança no adulto que cuida dela,
que ela sabe, que, com falhas e problemas,
sempre fará o possível para mantê-la segura
e dentro de um sistema de valores consistente,
seja ele baseado no que for, mas que faça
sentido para aquele núcleo familiar, ou, pelo
menos, para aquela parceria mãe/filho(a) ou
pai/filho(a).

* Carolina Torres é psicóloga clínica e professora em
Educação Infantil, graduada em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
em 2005, com especialização em:
Teoria Psicanalítica pela Coordenadoria Geral de Especialização,
Aperfeiçoamento e Extensão Universitária
(COGEAE) da mesma instituição, em 2009;
Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP), em 2013;
Ética, Valores e Cidadania pela Universidade de São
Paulo (USP), em 2014

Um abraço,
Carol

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