Olá,
Transcrevo a seguir uma matéria minha que saiu na Revista "Grandes Temas de Conhecimento: Psicologia" Número 19, publicada pela Mythos Editora, em Maio de 2015.
ALGO ACONTECEU NAS
RELAÇÕES ENTRE PAIS, ADULTOS EM GERAL, E AS CRIANÇAS, QUE DESAUTORIZA OS
ADULTOS DE DAREM “ORDENS” OU MESMO LIMITES AOS PEQUENOS, MÉDIOS E GRANDES
FILHOS.
Nesse artigo, vou destacar o papel da cultura e das mudanças sociais e
materiais como uma fonte de influência na mudança do lugar de autoridade dos
pais em relação às crianças e na presença de outras instâncias moderadoras da
relação entre os pais e os filhos que atravessam esse deslocamento de papéis.
Pretendemos,
também, traçar um campo para refletir as alterações subjetivas, não só em
relação aos filhos, mas em relação aos projetos pessoais dos sujeitos, que acabam
se refletindo no desejo de serem pais. O conceito de autoridade se define por: “1.
Direito ou poder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões, de
agir, etc. 2. Aquele que tem tal direito ou poder. 3. Os órgãos do poder
público. 4. Aquele que tem por encargo fazer respeitar as leis; representante
do poder público. 5. Domínio, jurisdição. 6. Influência, prestígio; crédito. 6.
Indivíduo de competência indiscutível, em determinado assunto”. Essa definição
do Dicionário Aurélio, nos ajuda a entender o que constitui o conceito
de autoridade, que vamos abordar no sentido de seu declínio.
A escola
passou a ser responsável por transmitir o que antes era adquirido por meio do
convívio familiar, como as “boas” maneiras, princípios morais e até educação
sexual.
Christopher Lasch, em seu livro A
cultura
do narcisismo, discute essas
questões
no contexto norte-americano. Vamos
utilizar
suas reflexões considerando que a
cultura
norte-americana acabou por influenciar
os
modos de produção e, consequentemente,
de
subjetivação no mundo ocidental. Lasch
pensa
na reprodução humana como na
reprodução
da força de trabalho. Tanto a
reprodução
em si, quanto os cuidados em relação
aos
jovens, sempre estiveram centrados no
seio
da família, porém o sistema de
socialização
da produção, ou seja, a produção em
massa,
também chamada “industrialização”,
acabou
se apropriando também desses aspectos
e das
funções socializadoras do lar que,
após a II
Revolução Industrial,
foram colocadas sob a
alçada do
Estado.
O que
anteriormente era adquirido por
meio do
convívio com os familiares, passou a
ser
recebido pela escola: “boas” maneiras, princípios
morais e
até educação sexual. Mudanças
sociais,
políticas e industriais fizeram com que
a escola
assumisse responsabilidades antes assumidas
pelo lar,
como o treinamento físico,
mental e
social. Na república social, a criança
é vista
como um futuro cidadão e, portanto, é
responsabilidade
do Estado, e não de seus pais.
Seu
bem-estar é de interesse do Estado, que
deve
evitar os danos que os pais possam causar
a seus filhos.
E aqui, o acesso do Estado a essas
crianças
se dá por meio da escola, que assume,
nessa
política, o papel de autoridade máxima
em
relação aos filhos. O Professor passa a ser
Educador.
Os
trabalhadores, pais dessas crianças,
são
postos de lado e obrigados a trabalhar
para o
Estado. O bem-estar de seus filhos é
“garantido”
por essas instituições substitutas
e não há
opção, pois o Estado coloca-se como
responsável
por eles, em nome de um desenvolvimento
saudável
para essas crianças, visando ao bem da sociedade,
como um
todo.
O
trabalho infantil foi proibido e a custódia
da
criança era dada à escola. O Estado via
nos lares
desfeitos uma fonte de jovens delinquentes
e
ameaçadores. A autoridade dos
pais
sobre seus filhos dependia, agora, do desejo
de esses
pais em cooperar e em obedecer
aos
tribunais de menores, caso contrário,
as
competências do sujeito, como pai, seriam
questionadas
e a convivência com sua prole
impedida.
O movimento
por melhorias do lar possui grandes
contradições,
pois, ao mesmo tempo em que instrui
os pais
no cuidado com os filhos, dá as costas a esses
pais e
toma essa função para si.
Os
reformistas concordavam que a família
promovia
uma mentalidade restrita e
desfavorável
ao desenvolvimento da criança,
levando-os
a supor que agentes externos
deveriam
substituí-la para o bem da criança.
Agentes,
inventados para assumir o papel dos
pais que
fossem considerados inadequados,
passaram
a educar e formar as crianças, sob
a tutela
do Estado.
Nesse
contexto, diz Lasch, surgiu também
a chamada
“educação de pais”, promovida
pelo
Estado por agentes especializados na
criação
de crianças, para gerar melhorias
na
qualidade do cuidado dado à criança na
família.
A escola assumiu um papel mais extenso
– o de
cultivar na criança a socialização
fora do
âmbito familiar.
O
movimento pela melhoria do lar
passou
por contradições enormes, pois, ao
mesmo
tempo em que buscava instruir os
pais nos
cuidados a serem dados aos filhos,
dava as
costas a esses mesmos pais, tomando
a frente
nessa função. Esse movimento, que
surgiu
como parte de um esforço mais amplo
de
civilizar as massas, atingiu o cerne da estrutura
familiar,
desautorizando maciçamente
os pais,
em sua relação com os filhos.
Segundo
Lasch, especialistas de diversos
campos
incidiam sobre a família e retiravam
as
crianças dos lares ditos “impróprios”,
impondo
substitutos às figuras parentais. Percebiam,
porém,
que apesar dessas ações, as
crianças
continuavam “fiéis” aos pais de origem.
Começou-se,
então, a pensar que aquelas
famílias,
consideradas desestruturadas e
ameaçadoras
para as crianças, ofereciam a
elas algo
que o lar adotivo não podia dar .
A ideia,
então, tornou-se “salvar” não
mais a
criança isoladamente, mas toda a família
“desestruturada”,
buscando, também, um
modo de
civilizar as massas. Os médicos passaram
a atacar
os métodos tradicionais de cuidado
com as
crianças. Tiravam aos poucos a
confiança
dos pais em relação à sua capacidade
de cuidar
de seus filhos e iam colocando-se
no meio
do caminho, com seus conhecimentos
técnicos
supostamente mais adequados.
Com o
advento das novas formas de
controle
de natalidade, os pais se liberaram
da carga
de criar filhos indesejados, mas, ao
mesmo
tempo, surgia-lhes uma espécie de
obrigação
de fazer com que os seus filhos se
sentissem
desejados o tempo inteiro.
Nos anos
1940, a ideia contrária à anteriormente
defendida
pelos especialistas aparece:
agora, os
pais deveriam voltar a confiar
em seus
instintos, no que diz respeito à
criação
dos filhos. Os especialistas se deram
conta de
que seus conselhos haviam minado
a
confiança dos pais e chegaram à conclusão
de que
não deveriam culpar exclusivamente
aos pais
pelas faltas de seus filhos.
Os pais
modernos confiam numa forma prescrita
pelos
especialistas para criar seus filhos como os
“vencedores”
que a sociedade exige.
No
discurso dos pais, aparecia a sensação
de ter
falhado em desempenhar o seu papel
como os
seus próprios pais haviam feito,
sem saber
o que poderiam ter feito diferente.
Esses
pais temiam repetir os erros de seus
pais e, por
isso, a opinião dos especialistas
virou
regra de conduta na criação. O antigo
modelo de
autoritarismo era abominado entre
os pais
modernos e a permissividade era
agora
mais comum.
A
desvalorização da paternidade, segundo
Lasch,
veio dessa transferência de funções
da
família para organizações especializadas.
As
habilidades técnicas, que o mundo
industrializado
exige dos profissionais, fazem
com que
os pais tenham muito pouco o que
levar do
cotidiano de seu trabalho para os filhos,
além do
amor. Essa situação promove
uma
separação, cada vez maior, entre o mundo
do adulto
e o da criança, e dificulta, cada
vez mais,
as identificações psicológicas fortes
dos
filhos com seus pais.
Os pais
modernos confiaram em um
jeito
prescrito pelos tais especialistas para
lidar com
seus filhos e têm um compromisso
com uma
ideia de parentalidade perfeita
– criar
os filhos “vencedores” que a sociedade
contemporânea
exige. O sentimento parental
não é
espontâneo, mas idealizado, e o cuidado
que os
pais têm para com esses filhos é
exagerado,
mecânico, sufocante e esvaziado
do
investimento libidinal genuíno.
A atenção
da mãe apoia-se tão fortemente
na visão
dos especialistas, que não
passa a
sensação de segurança aos filhos.
Ambos os
pais buscam, na família, um refúgio
ao mundo
externo, que julgam ameaçador. O
que eles
não percebem é que os padrões familiares
são
oriundos, e constantemente reforçados,
pelas
condições externas. Segundo
Lasch, o
declínio da autoridade parental reflete
o
declínio do superego na sociedade, ou
seja, uma
diminuição da função paterna, que
dá
limite, protege e breca os instintos nos filhos,
criando
uma geração sem autodomínio
e sem
freio, permissiva, que vive em função
dos
prazeres do consumo exagerado.
Voltamos
aqui a pensar que as mudanças
na
família levaram a uma mudança no
conteúdo
do superego, pois, com o fracasso
da
autoridade dos pais, o superego dos filhos
mantém-se
colado às imagens arcaicas dos
pais, ou
seja, esse superego permanece punitivo
e severo
sem flexibilização. Um clima
social de
permissividade com um superego
severo
como aquele da infância, resulta num
descontentamento
e em modos depressivos
de
subjetividade.
A
abdicação da autoridade parental
intensifica,
ao invés de diminuir, o medo de
punição
que a criança tem, porque suscita
pensamentos
de punição muito severos, daquela
fase
primitiva. As experiências com a
autoridade
externa complementam o treinamento
do
cidadão, mas o controle social não
promove
uma alteração no superego primitivo.
Coisa que
só acontece nas relações familiares,
onde o vínculo
é supostamente incondicional,
o que
significa que independe
de um
comportamento bom ou mal, mas que
é
atravessado por eles e pelas consequências
deles.
Vemos,
assim, que a evolução da sociedade
pós-Segunda
Revolução Industrial
reformulou
padrões de convívio familiar e
de
condutas parentais por meio da especialização
dos
cuidados com a criança e do afas-
tamento
dos pais da convivência com seus
filhos. A
ampliação da jornada de trabalho e
a
retirada da responsabilidade da família em
relação à
educação e à socialização primária
das
crianças tiveram um enorme efeito de
desvalorização
da autoridade parental que
abalou a
autoconfiança dos pais como cuidadores
efetivos
de sua prole.
“Este
movimento de dar o controle às crianças, porém não é sem retorno, muito pelo
contrário, já tem sido alterado e questionado pelas famílias e pela nova
geração de profissionais que auxiliam e trabalham em parceria com estas
famílias.”
Esse
movimento de dar o controle às
crianças,
porém, não é sem retorno, muito
pelo
contrário, já tem sido alterado e questionado
pelas
famílias e pela nova geração de
profissionais
que auxiliam e trabalham em
parceria
com essas famílias. Os novos pais
procuram
mudar a natureza de suas relações,
colocar-se
novamente como aqueles que sabem
o que
deve ou não acontecer na conduta
de seus
filhos e nas relações com eles, ainda
que com
muito custo e com dúvidas e algumas
vezes
questionando-se de estar fazendo
a melhor
coisa, o que é comum que aconteça
depois de
tanto tempo de questionamento sobre
sua
própria condição em tomar as rédeas
da
educação moral de seus filhos.
É
imprescindível que os pais possam
reaver
seus direitos parentais e terem dessa
maneira a
possibilidade de se relacionar de
forma
mais saudável com seus filhos, sem
modo de lhes
dar o limite, limite este que é
fundamental
e fundante para gerar crianças
e
adolescentes que possam vir a se tornar
adultos
seguros, confiantes e felizes, por
terem nos
pais e responsáveis esse espelho
de
segurança, de alguém que não lhes deixe
de colocar
em risco, que lhes promova o
acolhimento
e também a cobrança, a briga e
a bronca
quando estiverem ultrapassando e
testando
esses limites. Só assim as crianças
terão a
confiança no adulto que cuida dela,
que ela
sabe, que, com falhas e problemas,
sempre
fará o possível para mantê-la segura
e dentro
de um sistema de valores consistente,
seja ele
baseado no que for, mas que faça
sentido
para aquele núcleo familiar, ou, pelo
menos,
para aquela parceria mãe/filho(a) ou
pai/filho(a).
*
Carolina Torres é psicóloga clínica e professora em
Educação
Infantil, graduada em Psicologia pela Pontifícia
Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP),
em
2005, com especialização em:
Teoria
Psicanalítica pela Coordenadoria Geral de Especialização,
Aperfeiçoamento
e Extensão Universitária
(COGEAE)
da mesma instituição, em 2009;
Pedagogia
pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP),
em 2013;
Ética,
Valores e Cidadania pela Universidade de São
Paulo
(USP), em 2014
Um abraço,
Carol
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