Saiu na edição deste mês um texto meu na Revista Psicologia da editora Mythos.
Minha matéria é a última chamada "Existe mais questões entre pais e filhos do que queremos acreditar".
Está na página 44 deste link: https://drive.google.com/file/d/0B4lRqFVUqvsnNnFfcmF5VUZLYzA/view?usp=sharing
E também na transcrição abaixo:
Espero que gostem!
Um abraço!
Carol
Existem mais questões entre pais e filhos do
que queremos acreditar
Como a terapia familiar pode ajudar no desenvolvimento de
estratégias para negociar de maneira saudável com a criança
Carolina Torres*
Influências na relação de uma criança com seus
pais
No trabalho psicoterapêutico com famílias, existem diversos
âmbitos que devemos considerar na prática clínica que influenciam diretamente a
relação que os pais terão com uma criança. Não existe apenas uma forma de se
constituir enquanto indivíduo. Uma família
é atravessada por gerações e relações intergeracionais que não podem ficar de
fora quando avaliamos e ajudamos na orientação de uma família que se sente despreparada
ou em desequilíbrio na forma de solucionar conflitos com a criança.
É importante pensarmos, antes mesmo de acolher uma família,
de onde vêm as principais influências na vida de uma pessoa e tratar das
relações a partir de todos estes âmbitos a que cada membro da família está
sujeito. Estes âmbitos são essencialmente três: o ambiente cultural, ou seja, o
contexto onde esta pessoa vive e sob que influências de valores e de ideais ele
participa; o ambiente social, ou seja, as principais relações reais externas à
família a que está sujeito e a que tem acesso; e também o ambiente familiar,
que pode ser extenso, mas que deve se restringir a análise daqueles que
realmente geram uma influência direta ao núcleo familiar que estaremos
tratando.
Nem sempre é fácil definir este tipo de influência nos três
âmbitos e reconhecer ao que cada núcleo familiar está sendo direcionado a
idealizar numa criança, sem mesmo perceber, ou seja, de forma inconsciente.
Das relações com o ambiente cultural surgem as demandas e
concepções mais amplas que nem sempre são questionadas pela família gerando
padrões artificiais sobre o que é a normalidade, sobre a expectativa a que este
núcleo familiar deve corresponder e que pode ser muito cruel, exigindo sucesso
nas mais diversas áreas de forma idealizada e desumana como na saúde física, na
aparência, no status social, na “popularidade”, em ser ou não influente, em ter
ou não uma renda que permita adquirir itens específicos, entre outras coisas.
Este ideal externo pode ter influência na relação dos pais com seus filhos gerando
uma disparidade entre a relação real e o interesse pelo que o filho pode
oferecer e do que gosta de fato, podendo gerar uma expectativa massificada que
precisa ser desmistificada, para gerar menos sofrimento e proporcionar uma
relação real.
Um filho que seja mais tímido, inseguro ou que tenha
dificuldade de se expressar em público pode não apenas preocupar, mas também
frustrar ou envergonhar pais que idealizaram um filho que fosse popular e “descolado”.
Este tipo de idealização pode ter raízes na mídia, na ideia de sucesso contida
em filmes, novelas, seriados, propagandas, ou também pode vir a serviço de
reproduzir um desejo que os pais têm em relação ao filho de que este possa
redimir sua própria experiência na idade dele, “reparando” uma fase deles de
insucesso na vida escolar, por exemplo.
Não é raro ver pais que desejam ver em seus filhos uma
continuação aprimorada de si mesmos e obrigam as crianças a fazerem um esporte,
a tocar um instrumento, a participar de um grupo religioso, de um clube, a
fazer um curso específico na graduação ou mesmo a enveredarem numa profissão,
apenas porque este era o seu próprio desejo que não foi possível ser realizado.
Neste exemplo se misturam as influências dos âmbitos culturais, sociais e
familiares.
Desta maneira, a influência social transpassa gerações e
precisa de muita reflexão para ser desmistificada e para que os pais consigam
se separar da criança, deixando-a viver aquilo que realmente tem a ver com ela
e não com os desejos impostos pelos âmbitos culturais, sociais ou familiares.
O problema é que muitas vezes estas expectativas e
influencias não aparecem para os pais de forma consciente e por poder
transpassar mais de uma geração, sendo repassada por questões não ditas que
passaram desde os avós ou bisavós da criança, sem o advento das palavras, mas
apenas através de ações que foram sendo reproduzidas como a única possibilidade
de existência dentro deste núcleo familiar, não é claro para a maioria dos pais
que seja possível encararem o filho de forma diferente, mas é!
Não raro uma mãe que saiu da casa de sua própria mãe para se
casar e mudar de Estado, por exemplo, teme tanto que uma filha siga seus passos,
que não permite que sua filha trave laços reais com seus pares, aflita de que a
criança a deixe sozinha, repetindo sua história. Nestes casos, a criança pode
sofrer por não poder expressar seu afeto pelas outras pessoas, e pode, no final
do processo, fugir de casa ou traçar um caminho que gere este “abandono”, para
poder finalmente travar os laços que quiser fora do controle excessivo causado
pela mãe. Este é um exemplo típico da influencia do âmbito familiar.
Quando este tipo de desfecho acontece, chamamos a temática
que a mãe teme de “Profecia auto realizadora”, pois o que ela teme acaba mesmo
por acontecer, pelas suas próprias ações reativas ao medo de que isso aconteça.
O processo é totalmente inconsciente e pode ser trabalhado num processo
terapêutico que vá destrinchando as relações intergeracionais até atingir um
ponto de entendimento da situação, que pode ser muito anterior a esta própria família
que estamos tratando, dependendo do quanto há de conteúdo “não dito” nos
núcleos familiares que geraram influência sobre esta criança.
Também é muito comum que mães ou pais tenham uma experiência
de reviver a sua própria relação com os pais ao se transformarem eles mesmos em
pais, conseguindo compreender melhor alguns eventos e até mesmo elaborando uma
relação difícil anterior.
Neste momento pode ocorrer o quadro de “depressão pós parto”,
por exemplo, que faz com que as mães que acabaram de ter filhos entrem num
processo muito introspectivo que muitas vezes a deixam incapazes de cuidar do
próprio filho. Este processo pode ter variadas causas em cada mulher, mas muitas
vezes, pode estar associado à uma reação dela em ter que assumir o papel de mãe
e revivendo na possível regressão que a maternidade pode trazer de seu próprio
processo gestacional e da sua relação com a sua mãe nos primórdios da sua vida.
Os primeiros momentos de nossas vidas são sempre esquecidos por
nós, e a experiência de estar presente como a principal responsável por outro
ser humano, que é a maternidade ou a paternidade, é um evento que pode ser
encarado de diversas formas, mas a principal delas é vivida como uma dedicação
absoluta ao outro, como uma simbiose ou até mesmo uma sensação de
indiferenciação entre mãe e bebê.
Esta sensação é a que acontece com os bebês, que inicialmente
não tem noção de seus limites físicos ou psíquicos, tendo na relação com os
pais a possibilidade de compreender aos poucos que é ser um indivíduo separado
deles. Quando há uma regressão na mãe gerada por seus próprios conteúdos
internos mal elaborados na sua primeira infância, a mãe tem dificuldade de
oferecer suporte à individuação da criança e pode gerar dificuldades no
processo de desenvolvimento dela. Na confusão mental que a regressão da mãe
gera, ela pode achar natural que a criança seja esta continuação de si mesma,
sem existência autônoma, e isso pode ser muito nocivo no desenvolvimento do
bebê.
O trabalho de orientação familiar
No trabalho clínico de orientação familiar o que podemos
fazer inicialmente é escutar a demanda de angústia gerada pela criança em seus
pais e ir destrinchando aos poucos o que esta queixa significa: de onde ela vem
e a serviço de quem estamos trabalhando. Muitas vezes o que os pais nos pedem é
para manter a criança em um lugar de “bode expiatório” dos problemas do núcleo
familiar e quando a tratamos e a criança começa a melhorar por se diferenciar dos
pais e ter outra perspectiva de si mesma no espaço terapêutico, surge espaço
para uma elaboração na família, desestabilizando o funcionamento neurótico do
núcleo e é aí que muitos dos pais tiram a criança do tratamento, por medo do
que esta necessidade de mudança no ponto de equilíbrio nas relações familiares
pode gerar.
Um funcionamento doentio da família pode colocar a criança denominada
“difícil” como um foco que serve para desviar, por exemplo, uma dificuldade
real no relacionamento entre o casal, que tem como “desculpa” um comportamento
que demanda atenção na criança que não os permite encararem um ao outro.
Uma criança é um ser muito sensível a tudo que está ligado
diretamente a ela e os pais são seu porto seguro. Quando há uma dificuldade na
relação entre eles, a criança se desorganiza mesmo sem ser informada através de
palavras de que há algo de errado entre os pais. Há casos em que os pais dizem
que a criança não pode estar sofrendo com um desentendimento entre eles, pois
eles nunca brigaram em sua frente, ou, acreditam que a criança não entende
nada, e que, portanto, uma briga entre os pais não pode ter nada a ver com o
seu comportamento mais agitado, por exemplo.
É neste momento que os pais se enganam. Mesmo as crianças que
não falam, estão sempre muito atentas e conectadas ao que acontece ao seu redor
e, exatamente por não falar ou entender as palavras, que elas se conectam muito
mais ao “clima” afetivo e emocional que se instaura na casa e nas relações,
sendo ainda mais influenciada pelo “não dito” do que pelo dito. É importante
considerar a presença e a capacidade da criança de fazer parte da vida familiar
desde o início, mesmo quando ela não fala ou parece não entender nada, e é
assim que se vai gerando uma sensação de pertencimento e de segurança na
criança, por ser considerada um ser humano pensante tanto quanto todos os
adultos da casa, se organizando e se acalmando desta maneira.
Negociando com uma criança
O processo de negociação com uma criança parece complexo, mas
é o mais simples possível e deve se basear num conceito muito simples de
convivência: o respeito e a confiança.
Não é raro vermos adultos que lidam com crianças como se elas
fossem bichinhos sem consciência, que não precisam ser levados em conta intelectualmente
em nenhuma situação e que apenas são cuidados e transportados de um lado para o
outro sem haver uma comunicação verbal que considere a vontade da criança. Se
não há uma comunicação sobre o que está indo fazer ou outros detalhes do que
acontece a sua volta, como a criança vai irá desenvolver a capacidade de
negociação?
Neste tipo de relação não há nenhum tipo negociação e a
criança não aprende a se colocar e não consegue se sentir segura e confiante no
adulto responsável por ela. Ela pode nutrir um vínculo afetivo, mas se sente
desamparada e completamente fora do controle de sua própria vida, com angústias
que podem surtir efeitos colaterais variados, como a enurese noturna a
irritabilidade, a dificuldade de expressão verbal, agressividade, terrores
noturnos, entre outros.
É claro que não iremos oferecer a uma criança o controle
total sobre sua própria vida, pois ela depende de nós, adultos, para viver
durante um longo período de sua existência. Porém é sempre possível oferecer
algum nível de escolha a ela, nem que seja entre um suco de um sabor ou de
outro, um brinquedo de uma cor ou de outra, um lugar ou outro para sentar-se, o
colo de um adulto ou de outro, entre tantas outras pequenas ações que parecem
banais, mas que dão aos pequenos um exercício muito importante sobre como
funcionam as escolhas e uma noção mínima de controle sobre sua vida, que
afinal, se baseia em sequencias de pequenos momentos como nos exemplos que
demos.
É também essencial que se comunique às crianças sobre o que
irá acontecer na rotina delas e manter de fato uma sequencia de atividades que
sejam mais ou menos previsíveis para que as ajude a se organizar internamente. Engajar
a criança em tarefas simples como ajudar a organizar sua mochila ou lancheira
para a escola no dia seguinte, marcar num calendário quantos dias faltam para
um evento importante, saber o que irá acontecer na sequencia de dias, seja no
período letivo ou durante as férias ou finais de semana, entre outras coisas.
Eventos marcantes e que geram mobilização emocional, como uma doença na família
ou um luto precisam ser compartilhados com as crianças de alguma maneira, para
que elas possam também elaborar este fato, ao modo delas. Não existe um assunto
que não possa ser tratado com uma criança, mas ele não deve ser tratado de uma
forma “adultizada”. A criança tem seu universo simbólico e seus recursos para
lidar com as situações, mas não deve ser exposta a respostas sobre o que não
perguntou, mas se há interesse, ela deve sim ser participada dos eventos
importantes, especialmente se tiver a ver com a morte de algum ente querido.
Na conversa com crianças maiores que apresentam dificuldades
que preocupam seus pais, é possível que se encontrem num processo de muita insegurança, e que promovam brigas em relação a toda e
qualquer coisa que os adultos a peçam. É comum que as crianças não aceitem
pedidos simples como para tomar um banho, fazer uma lição de casa, guardar
brinquedos, arrumar o quarto, ou mesmo comer um vegetal, é preciso ter muita
paciência para conseguir promover uma mudança em sua noção de individualidade e
também tentar perceber de que maneira se está encarando esta criança, para não
fixá-la neste lugar de criança “problema”, impossibilitando através deste olhar
que ela possa ser ativa em suas decisões e que possa sair do papel dado a ela
pelo núcleo familiar. Por pior que o rótulo de “problemático” seja, ele é um
papel exercido por ela e que ela sabe representar. Por conta disso é preciso
oferecer a possibilidade de que ela exerça outros papéis, e só os adultos podem
ser capazes de dar espaço para que ela dê respostas espontâneas, oferecendo um
espaço de acolhimento que lhe faça sentir segurança em arriscar agir de outra
forma e a partir daí decidir que papel prefere exercer.
Não é possível e nem justo exigir algo da criança, como uma
postura de responsabilidade e maturidade quando se trata ou encara a criança em
outros momentos como um bebê, incapaz de participar das coisas. É preciso ter
consistência e respeitar o que se espera dela com clareza. É claro que para os
pais a criança será sempre um pequeno a ser cuidado, mas nem por isso é
impossível perceber seu crescimento e oferecer a ela situações de maturidade e
de responsabilidade, sempre de forma gradual e com o benefício da dúvida, para
ela possa errar e aprender aos poucos como lidar com a responsabilidade
oferecida. É importante que as exigências feitas façam sentido para a criança e
que não seja algo aleatório apenas porque se quer dar uma tarefa a
ser cumprida. É essencial conversar sobre a razão desta tarefa ser responsabilidade
dela e sua importância ao fazer isso.
O mais importante é ter em mente que as relações são sempre
perpassadas por outras relações e que ter respeito pela criança, como outro ser
humano, é o melhor que um pai ou mãe podem fazer. Tentar deixá-la ser quem ela é e não
uma continuação de si mesmo. Lembrar que se cria um filho para ser feliz e não
para cuidar de nós ou para realizar o que nós mesmos não conseguimos realizar.
Essa liberdade e respeito é o que pode gerar uma facilidade na negociação com
uma criança considerada “difícil” e também com qualquer outra criança e também
adulto. Devemos conseguir ser consistentes, inspirar confiança e tratar as
crianças como elas são: seres autônomos e livres e, principalmente,
independentes de nossa determinação.
Deixemos as crianças serem quem elas são, sempre orientando,
dando exemplos e inspirando os valores humanos que acreditamos, mas sem impor
ou diminuir as aspirações que surgirem deles, e veremos como elas são capazes
de nos surpreender, quando recebem esta liberdade e confiança.
*Carolina Torres é
psicóloga clínica e pedagoga em educação infantil. Atua em consultório
particular e na Escola Alecrim. Autora do Blog “Existe Psicologia em SP” (www.existepsicologiaemsp.blogspot.com) que trata de temas de psicologia, educação e
cultura. Contato através do e-mail: torres.carolina@gmail.com ou do telefone 11 9 9327 4319.