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sexta-feira, 29 de julho de 2016

Existem mais questões entre pais e filhos do que queremos acreditar

Olá, 

Saiu na edição deste mês um texto meu na Revista Psicologia da editora Mythos. 
Minha matéria é a última chamada "Existe mais questões entre pais e filhos do que queremos acreditar". 

Está na página 44 deste link: https://drive.google.com/file/d/0B4lRqFVUqvsnNnFfcmF5VUZLYzA/view?usp=sharing
E também na transcrição abaixo:

Espero que gostem!

Um abraço!
Carol


Existem mais questões entre pais e filhos do que queremos acreditar

Como a terapia familiar pode ajudar no desenvolvimento de estratégias para negociar de maneira saudável com a criança
Carolina Torres*

Influências na relação de uma criança com seus pais

No trabalho psicoterapêutico com famílias, existem diversos âmbitos que devemos considerar na prática clínica que influenciam diretamente a relação que os pais terão com uma criança. Não existe apenas uma forma de se constituir enquanto indivíduo.  Uma família é atravessada por gerações e relações intergeracionais que não podem ficar de fora quando avaliamos e ajudamos na orientação de uma família que se sente despreparada ou em desequilíbrio na forma de solucionar conflitos com a criança.

É importante pensarmos, antes mesmo de acolher uma família, de onde vêm as principais influências na vida de uma pessoa e tratar das relações a partir de todos estes âmbitos a que cada membro da família está sujeito. Estes âmbitos são essencialmente três: o ambiente cultural, ou seja, o contexto onde esta pessoa vive e sob que influências de valores e de ideais ele participa; o ambiente social, ou seja, as principais relações reais externas à família a que está sujeito e a que tem acesso; e também o ambiente familiar, que pode ser extenso, mas que deve se restringir a análise daqueles que realmente geram uma influência direta ao núcleo familiar que estaremos tratando.

Nem sempre é fácil definir este tipo de influência nos três âmbitos e reconhecer ao que cada núcleo familiar está sendo direcionado a idealizar numa criança, sem mesmo perceber, ou seja, de forma inconsciente.

Das relações com o ambiente cultural surgem as demandas e concepções mais amplas que nem sempre são questionadas pela família gerando padrões artificiais sobre o que é a normalidade, sobre a expectativa a que este núcleo familiar deve corresponder e que pode ser muito cruel, exigindo sucesso nas mais diversas áreas de forma idealizada e desumana como na saúde física, na aparência, no status social, na “popularidade”, em ser ou não influente, em ter ou não uma renda que permita adquirir itens específicos, entre outras coisas. Este ideal externo pode ter influência na relação dos pais com seus filhos gerando uma disparidade entre a relação real e o interesse pelo que o filho pode oferecer e do que gosta de fato, podendo gerar uma expectativa massificada que precisa ser desmistificada, para gerar menos sofrimento e proporcionar uma relação real.

Um filho que seja mais tímido, inseguro ou que tenha dificuldade de se expressar em público pode não apenas preocupar, mas também frustrar ou envergonhar pais que idealizaram um filho que fosse popular e “descolado”. Este tipo de idealização pode ter raízes na mídia, na ideia de sucesso contida em filmes, novelas, seriados, propagandas, ou também pode vir a serviço de reproduzir um desejo que os pais têm em relação ao filho de que este possa redimir sua própria experiência na idade dele, “reparando” uma fase deles de insucesso na vida escolar, por exemplo.

Não é raro ver pais que desejam ver em seus filhos uma continuação aprimorada de si mesmos e obrigam as crianças a fazerem um esporte, a tocar um instrumento, a participar de um grupo religioso, de um clube, a fazer um curso específico na graduação ou mesmo a enveredarem numa profissão, apenas porque este era o seu próprio desejo que não foi possível ser realizado. Neste exemplo se misturam as influências dos âmbitos culturais, sociais e familiares.

Desta maneira, a influência social transpassa gerações e precisa de muita reflexão para ser desmistificada e para que os pais consigam se separar da criança, deixando-a viver aquilo que realmente tem a ver com ela e não com os desejos impostos pelos âmbitos culturais, sociais ou familiares.

O problema é que muitas vezes estas expectativas e influencias não aparecem para os pais de forma consciente e por poder transpassar mais de uma geração, sendo repassada por questões não ditas que passaram desde os avós ou bisavós da criança, sem o advento das palavras, mas apenas através de ações que foram sendo reproduzidas como a única possibilidade de existência dentro deste núcleo familiar, não é claro para a maioria dos pais que seja possível encararem o filho de forma diferente, mas é!

Não raro uma mãe que saiu da casa de sua própria mãe para se casar e mudar de Estado, por exemplo, teme tanto que uma filha siga seus passos, que não permite que sua filha trave laços reais com seus pares, aflita de que a criança a deixe sozinha, repetindo sua história. Nestes casos, a criança pode sofrer por não poder expressar seu afeto pelas outras pessoas, e pode, no final do processo, fugir de casa ou traçar um caminho que gere este “abandono”, para poder finalmente travar os laços que quiser fora do controle excessivo causado pela mãe. Este é um exemplo típico da influencia do âmbito familiar.

Quando este tipo de desfecho acontece, chamamos a temática que a mãe teme de “Profecia auto realizadora”, pois o que ela teme acaba mesmo por acontecer, pelas suas próprias ações reativas ao medo de que isso aconteça. O processo é totalmente inconsciente e pode ser trabalhado num processo terapêutico que vá destrinchando as relações intergeracionais até atingir um ponto de entendimento da situação, que pode ser muito anterior a esta própria família que estamos tratando, dependendo do quanto há de conteúdo “não dito” nos núcleos familiares que geraram influência sobre esta criança.

Também é muito comum que mães ou pais tenham uma experiência de reviver a sua própria relação com os pais ao se transformarem eles mesmos em pais, conseguindo compreender melhor alguns eventos e até mesmo elaborando uma relação difícil anterior.

Neste momento pode ocorrer o quadro de “depressão pós parto”, por exemplo, que faz com que as mães que acabaram de ter filhos entrem num processo muito introspectivo que muitas vezes a deixam incapazes de cuidar do próprio filho. Este processo pode ter variadas causas em cada mulher, mas muitas vezes, pode estar associado à uma reação dela em ter que assumir o papel de mãe e revivendo na possível regressão que a maternidade pode trazer de seu próprio processo gestacional e da sua relação com a sua mãe nos primórdios da sua vida.

Os primeiros momentos de nossas vidas são sempre esquecidos por nós, e a experiência de estar presente como a principal responsável por outro ser humano, que é a maternidade ou a paternidade, é um evento que pode ser encarado de diversas formas, mas a principal delas é vivida como uma dedicação absoluta ao outro, como uma simbiose ou até mesmo uma sensação de indiferenciação entre mãe e bebê.

Esta sensação é a que acontece com os bebês, que inicialmente não tem noção de seus limites físicos ou psíquicos, tendo na relação com os pais a possibilidade de compreender aos poucos que é ser um indivíduo separado deles. Quando há uma regressão na mãe gerada por seus próprios conteúdos internos mal elaborados na sua primeira infância, a mãe tem dificuldade de oferecer suporte à individuação da criança e pode gerar dificuldades no processo de desenvolvimento dela. Na confusão mental que a regressão da mãe gera, ela pode achar natural que a criança seja esta continuação de si mesma, sem existência autônoma, e isso pode ser muito nocivo no desenvolvimento do bebê.

O trabalho de orientação familiar

No trabalho clínico de orientação familiar o que podemos fazer inicialmente é escutar a demanda de angústia gerada pela criança em seus pais e ir destrinchando aos poucos o que esta queixa significa: de onde ela vem e a serviço de quem estamos trabalhando. Muitas vezes o que os pais nos pedem é para manter a criança em um lugar de “bode expiatório” dos problemas do núcleo familiar e quando a tratamos e a criança começa a melhorar por se diferenciar dos pais e ter outra perspectiva de si mesma no espaço terapêutico, surge espaço para uma elaboração na família, desestabilizando o funcionamento neurótico do núcleo e é aí que muitos dos pais tiram a criança do tratamento, por medo do que esta necessidade de mudança no ponto de equilíbrio nas relações familiares pode gerar.

Um funcionamento doentio da família pode colocar a criança denominada “difícil” como um foco que serve para desviar, por exemplo, uma dificuldade real no relacionamento entre o casal, que tem como “desculpa” um comportamento que demanda atenção na criança que não os permite encararem um ao outro.

Uma criança é um ser muito sensível a tudo que está ligado diretamente a ela e os pais são seu porto seguro. Quando há uma dificuldade na relação entre eles, a criança se desorganiza mesmo sem ser informada através de palavras de que há algo de errado entre os pais. Há casos em que os pais dizem que a criança não pode estar sofrendo com um desentendimento entre eles, pois eles nunca brigaram em sua frente, ou, acreditam que a criança não entende nada, e que, portanto, uma briga entre os pais não pode ter nada a ver com o seu comportamento mais agitado, por exemplo.

É neste momento que os pais se enganam. Mesmo as crianças que não falam, estão sempre muito atentas e conectadas ao que acontece ao seu redor e, exatamente por não falar ou entender as palavras, que elas se conectam muito mais ao “clima” afetivo e emocional que se instaura na casa e nas relações, sendo ainda mais influenciada pelo “não dito” do que pelo dito. É importante considerar a presença e a capacidade da criança de fazer parte da vida familiar desde o início, mesmo quando ela não fala ou parece não entender nada, e é assim que se vai gerando uma sensação de pertencimento e de segurança na criança, por ser considerada um ser humano pensante tanto quanto todos os adultos da casa, se organizando e se acalmando desta maneira. 

No trabalho clínico é importante orientar os pais nesta busca de justificativas e compreensão profunda de onde vem a demanda por tratamento, mas também é muito importante  poder trabalhar com a criança entendendo a visão dela sobre como esta demanda aparece e como pode ser traduzida aos pais. As sessões em família propriamente dita, com todos reunidos são imprescindíveis na ajuda quando a comunicação está travada entre pais e filhos. A terapia pode acabar retomando uma naturalização do vínculo entre crianças e pais, especialmente quando se propõem situações lúdicas e de descontração através da qual o psicólogo pode intervir, auxiliando para que a conversa possa fluir novamente entre os pares, trazendo espaços de negociação, de compreensão e de afeto que podem ter se desgastado ao longo das brigas e desentendimentos entre pais e filhos.

Negociando com uma criança

O processo de negociação com uma criança parece complexo, mas é o mais simples possível e deve se basear num conceito muito simples de convivência: o respeito e a confiança.

Não é raro vermos adultos que lidam com crianças como se elas fossem bichinhos sem consciência, que não precisam ser levados em conta intelectualmente em nenhuma situação e que apenas são cuidados e transportados de um lado para o outro sem haver uma comunicação verbal que considere a vontade da criança. Se não há uma comunicação sobre o que está indo fazer ou outros detalhes do que acontece a sua volta, como a criança vai irá desenvolver a capacidade de negociação?

Neste tipo de relação não há nenhum tipo negociação e a criança não aprende a se colocar e não consegue se sentir segura e confiante no adulto responsável por ela. Ela pode nutrir um vínculo afetivo, mas se sente desamparada e completamente fora do controle de sua própria vida, com angústias que podem surtir efeitos colaterais variados, como a enurese noturna a irritabilidade, a dificuldade de expressão verbal, agressividade, terrores noturnos, entre outros.

É claro que não iremos oferecer a uma criança o controle total sobre sua própria vida, pois ela depende de nós, adultos, para viver durante um longo período de sua existência. Porém é sempre possível oferecer algum nível de escolha a ela, nem que seja entre um suco de um sabor ou de outro, um brinquedo de uma cor ou de outra, um lugar ou outro para sentar-se, o colo de um adulto ou de outro, entre tantas outras pequenas ações que parecem banais, mas que dão aos pequenos um exercício muito importante sobre como funcionam as escolhas e uma noção mínima de controle sobre sua vida, que afinal, se baseia em sequencias de pequenos momentos como nos exemplos que demos.

É também essencial que se comunique às crianças sobre o que irá acontecer na rotina delas e manter de fato uma sequencia de atividades que sejam mais ou menos previsíveis para que as ajude a se organizar internamente. Engajar a criança em tarefas simples como ajudar a organizar sua mochila ou lancheira para a escola no dia seguinte, marcar num calendário quantos dias faltam para um evento importante, saber o que irá acontecer na sequencia de dias, seja no período letivo ou durante as férias ou finais de semana, entre outras coisas. Eventos marcantes e que geram mobilização emocional, como uma doença na família ou um luto precisam ser compartilhados com as crianças de alguma maneira, para que elas possam também elaborar este fato, ao modo delas. Não existe um assunto que não possa ser tratado com uma criança, mas ele não deve ser tratado de uma forma “adultizada”. A criança tem seu universo simbólico e seus recursos para lidar com as situações, mas não deve ser exposta a respostas sobre o que não perguntou, mas se há interesse, ela deve sim ser participada dos eventos importantes, especialmente se tiver a ver com a morte de algum ente querido.

Na conversa com crianças maiores que apresentam dificuldades que preocupam seus pais, é possível que se encontrem num processo de muita insegurança, e que promovam brigas em relação a toda e qualquer coisa que os adultos a peçam. É comum que as crianças não aceitem pedidos simples como para tomar um banho, fazer uma lição de casa, guardar brinquedos, arrumar o quarto, ou mesmo comer um vegetal, é preciso ter muita paciência para conseguir promover uma mudança em sua noção de individualidade e também tentar perceber de que maneira se está encarando esta criança, para não fixá-la neste lugar de criança “problema”, impossibilitando através deste olhar que ela possa ser ativa em suas decisões e que possa sair do papel dado a ela pelo núcleo familiar. Por pior que o rótulo de “problemático” seja, ele é um papel exercido por ela e que ela sabe representar. Por conta disso é preciso oferecer a possibilidade de que ela exerça outros papéis, e só os adultos podem ser capazes de dar espaço para que ela dê respostas espontâneas, oferecendo um espaço de acolhimento que lhe faça sentir segurança em arriscar agir de outra forma e a partir daí decidir que papel prefere exercer.

Não é possível e nem justo exigir algo da criança, como uma postura de responsabilidade e maturidade quando se trata ou encara a criança em outros momentos como um bebê, incapaz de participar das coisas. É preciso ter consistência e respeitar o que se espera dela com clareza. É claro que para os pais a criança será sempre um pequeno a ser cuidado, mas nem por isso é impossível perceber seu crescimento e oferecer a ela situações de maturidade e de responsabilidade, sempre de forma gradual e com o benefício da dúvida, para ela possa errar e aprender aos poucos como lidar com a responsabilidade oferecida. É importante que as exigências feitas façam sentido para a criança e que não seja algo aleatório apenas porque se quer dar uma tarefa a ser cumprida. É essencial conversar sobre a razão desta tarefa ser responsabilidade dela e sua importância ao fazer isso.

O mais importante é ter em mente que as relações são sempre perpassadas por outras relações e que ter respeito pela criança, como outro ser humano, é o melhor que um pai  ou mãe podem fazer. Tentar deixá-la ser quem ela é e não uma continuação de si mesmo. Lembrar que se cria um filho para ser feliz e não para cuidar de nós ou para realizar o que nós mesmos não conseguimos realizar. Essa liberdade e respeito é o que pode gerar uma facilidade na negociação com uma criança considerada “difícil” e também com qualquer outra criança e também adulto. Devemos conseguir ser consistentes, inspirar confiança e tratar as crianças como elas são: seres autônomos e livres e, principalmente, independentes de nossa determinação.

Deixemos as crianças serem quem elas são, sempre orientando, dando exemplos e inspirando os valores humanos que acreditamos, mas sem impor ou diminuir as aspirações que surgirem deles, e veremos como elas são capazes de nos surpreender, quando recebem esta liberdade e confiança.


*Carolina Torres é psicóloga clínica e pedagoga em educação infantil. Atua em consultório particular e na Escola Alecrim. Autora do Blog “Existe Psicologia em SP” (www.existepsicologiaemsp.blogspot.com) que trata de temas de psicologia, educação e cultura. Contato através do e-mail: torres.carolina@gmail.com ou do telefone 11 9 9327 4319.


segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Perguntas

Olá, 


Lanço aqui um texto meu antigo de que gosto muito. 

Porquê? Como? Quando? Onde? O quê? Quem? Qual?

Nunca respostas. Sempre perguntas. Perguntas sem realmente procurar respostas.
Por que só as perguntas incluem os outros. Afirmações respondem aos outros. Afirmações são esperadas e não feitas. A não ser que peçam por elas. A não ser que haja alguém no mundo que as necessite. Se não, não.
Perto de uma resposta há sempre uma pergunta que foi feita. Ou há uma pergunta simplesmente. Uma pergunta sem resposta se o for. Uma pergunta que é revidada com outra, que é revidada com o silêncio que já é em si resposta.
Indagações são sempre novas, mesmo as velhas. Um cumprimento já é questão. O olhar já é questão. Existir já é questão. Questão de coragem, de força, de busca. Uma busca nunca é uma afirmação. Existir afirma as perguntas.
Sem elas não há nada. Questão de tempo perceber a necessidade que as respostas têm de existir enquanto campo para novas perguntas. Duas afirmações são diálogo. Uma afirmação seguida de uma negação também. Mas são perguntas que são existir. Por que há um objetivo maior atrás de todas elas. Há a necessidade de compartilhar. Há a necessidade de conectar. Com o outro, sempre com o outro. Para o outro? Ou para si mesmo? Talvez apenas com.
Muitas coisas silenciam perguntas. Mas elas existirem basta. Basta para preencher a necessidade de existir.
Sem essa coisa-outro não tem graça. E essa coisa-outro pressupõe perguntas. “Como vai?” é como dizer “como é ser você?”, “como é aí do lado de fora de mim?”, “por que é possível deste lado haver algo diferente daqui de dentro?”, “onde fica você?”, “quando é que você existiu primeiro?”, “o que é ser você?”, “quem é você?”, “o quê faz você ser você e eu ser eu?”, “que diferença faz sermos dois e não um só?”, “por que é possível eu entender que você não sou eu?”, “quer saber como é ser eu?”, “qual é esse nosso limite?”, “porque estamos perguntando?”...
Quais as perguntas, como são feitas, com que objetivo são feitas fazem parte do ser a si mesmo. Em busca de entender através do outro o que nos falta. Porque alguma coisa sempre falta. Felizmente falta, daí se pode ir buscá-las nas perguntas. Daí, não nos fechamos sobre nós mesmos. Porque não podemos.
O outro afirma a própria existência. As perguntas seguidas das respostas. O toque do outro no limite do que sou eu, que é meu corpo. Uma resposta às vezes é um toque. Um toque de acolhimento ou de recolher. O som da fala é um toque. Um toque que precede o toque físico, mas que não prescinde dele.
A voz, o som, a música entra pelo corpo do mesmo jeito que o calor do toque. E preenche uma falta, ajuda a existir e a continuar a busca. Por que precisamos perguntar quem nós somos ao outro? Por que ele saberia melhor do que nós?
E a carência de não ter um outro com a atenção voltada (ao menos parcialmente) para nós é uma carência? Ou é um sinal de saúde na busca de contorno?
O que fazer desta falta é uma pergunta. Quando ela chega todos são acionados a ajudar. “O que eu faço?”, “O que você acha que eu faço?”, “O que você faria no meu lugar?”. E ainda que nunca possamos realmente estar no lugar do outro, podemos ajudar. Podemos imaginar a partir do que o outro é como seria ser este outro. E podemos errar ao dizer a ele o que fazer. Só por que não somos ele. Mas só saber como faríamos lhe basta. Por que a pergunta foi antes “como é ser você?”. E a afirmação foi “eu te ajudo a ser você, mas só posso fazê-lo a partir de quem sou e nada mais”.
Esse limite não é transponível. Por isso existir dá angústia. A angústia é nunca ser possível uma compreensão total do outro. A angústia é não existir uma verdade que caiba a todos nós. A angústia é a missão eterna de perguntar, de decidir a partir do possível e não do certo. A tarefa é infinita e cansativa. E deve gerar prazer. Sem prazer não se continua indagando. Não se avança no questionário colossal da vida.
Um bicho não pergunta, mas ajuda a gente a formular questões. Só porque existe e não pergunta. Papo furado pensar nessas questões aqui sozinha. Tudo para perguntar mais para mim mesma e chegar ao outro com menos angústia e sabendo que ele não sabe como eu sou e que eu não sei quem ele é. E que nunca saberemos. E, por isso mesmo não paramos de tentar entender.

Um abraço, 
Carol

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Creolina, o sistema manicomial e a vida mental humana


Olá, 

Hoje, voltando para casa, percebi uma sensação muito desagradável ao sentir um cheiro familiar no meio do caminho. Era creolina. A memória que o odor me trouxe foram longínquas e datam da época de minha formação em psicologia. 

Na graduação fazemos obrigatoriamente estágios na área da psicopatologia e psiquiatria e na época em que me formei, alguns deles eram em ambulatórios ou hospitais psiquiátricos (os antigos manicômios) que eram muito mais comuns e amplos na época (2001) do que o são agora, após uma agenda longa e contínua de luta contra o sintema manicomial de encarceramento de casos graves da psiquiatria.

O odor da criolina me levou de volta a ambientes que frequentei por conta da formação e que me colocaram diante de pessoas absolutamente abandonadas através do rótulo da loucura. Abandonadas de si mesmas, completamente despersonalizadas e misturadas com a instituição de acolhimento em que se encontravam, com roupas que não eram delas e sem dúvida, sem distinção do próprio eu, muito provavelmente com uma ajuda maior do processo de institucionalização do que da própria patologia específica que tinha ganhado como diagnóstico.

Ouvi histórias estranhas sobre delírios e alucinações, mas também percebi vínculos ambivalentes e contraditórios entre médicos, enfermeiros, pacientes, guardas, faxineiras e seguranças. Vi pessoas que vinham de longe buscar a cidade grande e que já na rodoviária se perderam em si mesmos por não entenderem a loucura de concreto, diante de sua realidade anterior, que era aquela do interior do país. Vi idosos que nunca foram adultos e que se mantiveram crianças para sempre. Vi a falta de limite entre o íntimo e o social. Soube de pacientes que ainda na época eram submetidos a eletrochoques para melhorarem de seus sintomas. Perdi um paciente que simplesmente tropeçou e caiu no meio do pátio de sua residência terapêutica. 

Sem dúvida estes estágios nos trouxeram um reconhecimento maior sobre os limites entre a sanidade e a loucura, entre o funcional e o disfuncional, entre o de acordo com as regras sociais e o que foge delas. Mais do que isso, acho que pudemos sentir na pele, atrás das grades, junto com eles, qual é a consequência da loucura "exposta" na nossa sociedade que não suporta a falta de sentido e de racionalização das coisas.

Desde então, mesmo sem trabalhar diretamente com a loucura em si, acho que consigo entender melhor a desrazão, os limites de comportamento que as pessoas podem chegar, a desconexão que a mente é capaz de fazer em relação ao funcionamento cotidiano e funcional, seja como uma defesa a um trauma muito intenso (físico ou emocional), seja por abuso do uso de droga, seja por quaisquer outras razões.

E eu passei a conhecer e a respeitar mais a nossa fragilidade mental. E respeitando esta fragilidade, passei lidar com as questões de qualquer ser humano, de qualquer idade, vindo de qualquer condição e contexto social ou biológico possível, com delicadeza e acolhimento. 

Ninguém sabe a verdade do outro. E só por isso, é preciso escutar primeiro. Antes de dizer ou oferecer qualquer coisa a ele. E principalmente, antes de criar um julgamento.

Um abraço,
Carol