quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O abandono e sua consequências


Olá, 

Hoje venho compartilhar com vocês uma atuação muito específica de minha clínica: o trabalho com crianças em situação de acolhimento.

Desde 2008 atendo crianças nesta situação de forma voluntária, em troca da participação em uma rede de atendimento às casas de acolhimento, aos grupos de supervisão dos casos e, principalmente, também em troca de uma experiência de contato com adultos que fazem parte do acolhimento de uma situação absolutamente vulnerável na vida das crianças e com estas crianças e adolescentes em situações terríveis. 

Ao longo destes anos de experiência com o contato e com o atendimento a esta população aprendi muito sobre a amplitude e profundidade do trabalho psicoterapêutico, sobre a importância do trabalho em rede e com conexão entre as tantas facetas do mundo destas crianças que é amplamente institucionalizado, da casa à escola, passando por serviços que oferecem cursos, tratamentos médicos, psicológicos, fonoaudiológicos, reforço escolar e até mesmo treinamento profissional. 

Nosso trabalho na clínica é ajudá-los a amarrar diversos pedaços. Desde a sua história de separação de seu núcleo familiar, que nunca vem livre de algum tipo de violência, seja ela física, emocional ou psicológica, elaborando o passado recente ou distante, um presente instável e atravessado por muitas pessoas diferentes e por um futuro normalmente nebulosos e cheio de dúvidas.

Para o trabalho clínico, essas crianças chegam armadas de defesas por todos os lados, com muito medo de perder novamente e por conta disso, a dificuldade de confiar e de se vincular é imensa. Trabalhamos por semanas, meses e ás vezes por anos, esperando que elas sintam a consistência do vínculo de alguma forma e que com esta experiência possível de confiança, possam algum dia, confiar novamente nos vínculos que irá formar, seja com pais substitutos, no caso de crianças pequenas ou de até 12 anos, seja com outras pessoas com quem irá conviver na vida. Depois dessa idade, raras são as famílias que adotam no Brasil, restando alternativas internacionais e, por conta disso mesmo, são mais delicadas, pois exigem um esforço maior da criança com a linguagem. 

No caso de adolescentes sem esta perspectiva de adoção, a rede trata de tentar "preparar" para vínculos saudáveis, para uma possível introjeção de valores que os ajudem nisso e também para o mercado de trabalho. Há opções de treinamentos, de trabalhos como aprendizes e uma preocupação com as moradias, repúblicas e outros mecanismos de moradia coletiva que seja constituída de pares com quem o adulto que saí deste sistema possa se identificar e se organizar minimamente numa vida produtiva. 

Todo o processo institucional não ajuda muito estes adolescentes a desenvolverem autonomia em seu processo, pois ele deve prestar satisfação de sua rotina e de seus passos a muitos lugares e pessoas diferentes e que não são tão bem amarrados em sua comunicação. Eles têm pouco espaço para traçar um caminho próprio, mesmo que seja de desejo e de sonho para si mesmos e na clínica também tentamos ajudá-lo a se independer destes caminhos pré-estabelecidos, tentando na comunicação com Casa de acolhimento, Fórum e com ele, buscar um espaço de existência singular e própria.

Tudo isso só é alcançado com muita sorte, quando o vínculo conosco é suportado pela criança que chega, e quando a parceria com as demais instituições ocorre, o que depende muito de nós e de nosso esforço em travar essa parceria e de não desistir jamais de fazer o que for possível por cada um deles. 

O abandono inicial, que pode ser causado por inúmeros fatores, de morte ou encarceramento dos pais à uma inabilidade funcional, psicológica ou material deles de cuidarem da criança, via denúncia ao conselho tutelar ou por busca de ajuda pelos pais, já é muito traumático. Mas ele pode ser duplamente agravado pelo próprio sistema de acolhimento que pode ser disfuncional, causando na criança um segundo abandono por suas vias burocráticas e lentas, como é o caso de muitos dos processos dentro das varas de infância.

Um caso que recentemente me chama muito a atenção é ter chegado a mim um caso de devolução por pais adotivos. Neste sentido, não posso deixar de me indignar pela criança por ela ter sofrido um segundo abandono que não pode acontecer. E que mesmo que haja uma pensão advinda destes "pais" até 21 ou 24 anos, esta criança não poderia ter, pela segunda vez, a sensação de que ela não é digna do amor de um casal de adultos. 

Escrevo com o coração pesado e com muita, mas muita determinação em ajudar esta criança a entender que o problema não está nela e que ela pode se dar mais uma chance de confiar em alguém. 

Espero que eu consiga!

Um abraço!

Carol 

7 comentários:

  1. Que trabalho desafiante e forte. Só posso lhe desejar muita força e determinação.

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    1. Desafiante, mesmo, Maria Cristina! Agradeço seus votos! Muito obrigada e um abraço!

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  2. Quão tocante...! Choca, instiga... Faz sentirmo-nos menores diante da grandeza do desafio...!

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    1. Olá Menna! Obrigada! Grandeza de desafio mesmo! Mas não se sinta menor! Somos do mesmo tamanho, cada um com seu desafio pela frente, não é assim? Um leão por dia! Grande abraço!

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  3. Olá, Carol. Estou fazendo uma monografia cujo tema é abandono afetivo, sou da área jurídica. Farei citação sua a respeito de sua publicação (devidamente referenciada, claro). Gostaria de saber se vc conhece casos de suicídio por abandono de um dos pais ou de ambos e se é comum fazer a ligação entre a depressão e o fato de ter sido abandonado.

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    1. Olá,
      No Instituto Fazendo História não tive contato com nenhum caso de suicídio ou depressão diagnosticados. Tive em minha experiência um caso de auto mutilação, uma adolescente que se cortava, mas não como tentativa de suicídio, mas como forma de chamar atenção dos adultos para si como outros jovens fazendo de outras maneiras através de comportamentos agressivos, antissociais, sexualizados ou infantilizados. Não tenho conhecimento de pesquisas que correlacionem diretamente o fator do abandono como de risco para depressão ou tentativa de suicídio, mas certamente o abandono é fator de sofrimento severo e de desorganização da vida psíquica de qualquer criança.
      Boa sorte em sua monografia! Envie para mim, se puder, ao finalizá-la para: torres.carolina@gmail.com
      Um abraço e obrigada pelo comentário!
      Carol

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