segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Representatividade: sobre pertencer a um grupo e não estar mais sozinho

Olá, 

passei estes dois últimos meses preparando uma fala para o "I Simpósio Psicologia e Sociedade" do Núcleo Paradigma, um espaço de formação de Analistas do Comportamento, que aconteceu neste sábado.

Neste simpósio, minha fala foi sobre psicoterapia e feminismo e, além de meu tema, pude participar ouvindo a apresentação de colegas psicólogos falando sobre o trabalho com a questão racial (especialmente a questão dos negros) e a psicologia num CRAS em Atibaia, sobre o trabalho com uma ONG que defende direitos LGBTs na cidade do Rio de Janeiro e sobre a abordagem da psicologia jurídica em Curitiba, no trabalho com adolescentes que cometeram atos infracionais. 

Todas as realidades destacadas colocavam as dificuldades em nosso trabalho com populações que chamamos de minorias, com pessoas que sofrem opressão, uma opressão que muitas vezes é naturalizada a tal ponto que não conseguimos distingui-la como algo que está errado, por ser tão habitual.

O preconceito contra os negros, contra os indivíduos da comunidade LGBT ou contra os deficientes ou aos pobres é tão grande, tão arraigado em nós que muitas vezes nós não conseguimos reconhecer ou fazer diferente a não ser nos calar diante da violência e da exclusão causada a elas pelas pessoas. Na questão da mulher então, é absurda essa naturalização da violência. 

A questão é que se calar e não atuar contra essa lógica de violência é o mesmo que aceitar, se mostrar conivente e apoiar essa atuação das pessoas. 

Conheci através deste simpósio alguns grupos que abrem espaço para reflexão e acolhimento destas populações que não estão representadas na mídia e portanto no imaginário social, sentindo-se ainda mais excluídos.

A internet vem criando espaços para que esta população possa se encontrar e encontrar modelos diferentes da "norma" social padronizada que coloca os homens, brancos, heterossexuais e cisgêneros como a única possibilidade de existência digna. 

Grupos no facebook, canais no youtube, revistas, coletivos de pessoas vem brigando por cavar espaço de existência, mostrando que estas pessoas negras, lésbicas, gays, transgêneros, pobres, mulheres, existem e tem muito a dizer!

Apenas através desse posicionamento, fazendo um espaço de existência e problematizando a realidade delas é que estas comunidades vão chegar aos jovens e pessoas que sofrem preconceito com sua inadequação ao modelo hegemônico, fazendo-os se sentirem parte de algo maior, parte de um grupo e não uma exceção que deve ser abolida, como muitos pensam sobre si mesmos ao descobrirem-se diferentes.

A representatividade que não aparece nas mídias tradicionais e nos espaços socialmente compartilhados ão ganhando espaço com a voz que estes coletivos dão ao um grupo que vai se aglomerando e crescendo, construindo um imaginário possível para si mesmo.

Canais como o "Canal das Bee", sobre a comunidade LGBT, ou o "Afros e Afins" sobre a comunidade negra, ou mesmo o "Jout Jout" que trata do feminismo de forma leve e acolhedora, abre caminhos e traz muitas outras pessoas no meio do Youtube e de fora dele, da comunidade, que contam e compartilham experiências incríveis de se relacionar com as diferenças de uma forma mais tranquila da que temos lidado.

Meu recado aqui e para muitos de meus pacientes que chegam num isolamento, se sentindo completamente sozinhos, é sempre o mesmo: Vá procurar a  sua turma! Ela existe com certeza e está aberta a você seja para apenas observar e se sentir menos sozinho, seja para de fato se engajar e entrar numa comunidade nova, a princípio virtualmente e, se você quiser, na vida real também!

Representatividade é apenas isso: não se sentir sozinho, ter alguém no mundo que te represente. Isso é fundamental para nossa formação, para nos agarrarmos a uma possibilidade de futuro, de vida possível, de ideal de nós mesmos e muda completamente a nossa relação com a nossa própria história e com o mundo a nossa vida, trazendo saúde mental ao invés de sofrimento. 

Vamos aproveitar o que os meios de comunicação e as redes sociais tem de melhor que é possibilitar o encontro? De nós conosco mesmos e com outros que nos façam bem?

Saí deste simpósio contente com as movimentações feitas pelas pessoas, em especial pelos jovens, e com certeza, apensar de muito mobilizada pela realidade que ainda é muito dura, também saí esperançosa pelo o que estamos construindo pela frente!

Sigamos resistindo!

Um abraço!

Carol

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O que a teoria feminista tem a ver com a psicoterapia?



Olá, 

Faz bastante tempo que não escrevo aqui. Tenho estudado um pouco sobre temas que irei tratar em um Simpósio no mês que vem e que andam me trazendo muita reflexão e questionamentos sobre a prática clínica, mas também sobre as relações sociais. 

O tema da fala será "O que a teoria feminista tem a ver com a psicoterapia?", e me foi sugerido pelo organizador do Simpósio, em que uma colega, professora universitária, foi chamada a falar e não poderá comparecer, me indicando em seu lugar.

O fato é que eu nunca havia parado para pensar sobre esta relação e aceitei o desafio, sem imaginar como é vasta a gama de ideias e relações possíveis entre os temas.

A princípio retomei minha própria visão de mundo e conhecimento sobre a teoria feminista, que nunca pensei ser tão ampla e diversa, versando de vários pontos de vistas diferentes e com a única perspectiva comum de que todas as vertentes buscam equidade de direitos entre todos os seres humanos e não apenas para as mulheres. Incrível como apesar de unificar a categoria "mulheres", alguns dos movimentos conseguem perceber dentro disso a diversidade entre elas e questionar até mesmo o conceito de "mulher", dado a princípio como algo óbvio, mas que pode ser questionado como um papel criado culturalmente para um ser humano cuja parte biológica o designa como fêmea, mas cujo papel social tem construções que não tem nada a ver com esta biologia, e sim com o que é esperado de um papel "feminino" através da cultura.

Em minhas pesquisas ando passando por estas questões de gênero, identidade e sexualidade, mas principalmente pela questão crucial que perpassa as relações humanas e onde o âmago do Feminismo me parece estar, que são as relações de poder.

Neste espaço é que consigo perceber onde entraria uma correlação possível com a psicoterapia, pois nela há um lugar em que o terapeuta é colocado como autoridade, doado de um suposto saber sobre o sofrimento do paciente, que pode influenciar a relação terapêutica reforçando um lugar de desigualdade, que é o avesso do que trata a visão feminista.

Gostaria de reforçar que apesar de muitas pessoas terem aversão ao tema feminismo, seja por visões equivocadas sobre a teoria, seja por experiências negativas com o tema, como alguns confundem ao pensar que estas mulheres se pretendem ser "contra" os homens, na realidade, a luta só existe para melhorar as relações entre as pessoas como um todo, trazendo igualdade  a elas, sem supor lugares de mais ou menos poder a partir de motivos aleatórios como o sexo biológico ou o gênero de uma pessoas, que em nada influenciam na capacidade de alguém exercer um papel ou outro na vida social. 

Estas visões de papéis específicos surgem através de convenções morais antiquadas e machistas que colocam o homem num lugar privilegiado sem qualquer justificativa plausível, da mesma maneira como costumam ser colocados os privilégios de forma geral, através de raça, classe social, instrução, poder aquisitivo, entre outros.

É compreensível que pareça difícil às pessoas acostumadas a naturalizar os papéis tradicionais de homem e mulher como diferentes, pelo hábito de fazê-lo, e pelo lugar de privilégio confortável em que se encontram e de onde não querem sair. Porém, a teoria e a militância feministas conseguem enxergar razões suficientes para que isso seja justificável como necessário para o avanço das relações sociais e para o desenvolvimento da humanidade, num sentido de igualdade e respeito entre todas as pessoas.

Na militância pelos direitos da mulher, encontra-se como ponto central a luta contra a violência contra a mulher, seja de forma física ou psicológica, que se dá em larga escala no Brasil e em todo o mundo, como pudemos testemunhar em casos mais difundidos aqui no Brasil no primeiro semestre e na Argentina há poucos dias atrás, gerando comoção, passeatas e até greves entre as mulheres. Os casos de violência somam-se diariamente e são absurdos, brutais e injustificáveis, a não ser pelo viés do poder do homem sobre a mulher, que não existe.

Tratar dentro do consultório de uma forma adequada à esta realidade, com uma visão crítica e real sobre o tema, é não apenas uma forma de legitimar o que acontece na realidade dos pacientes, dando-lhes a chance de pensar e refletir sobre essa naturalização de relações perversas de forma crítica e não apenas reproduzindo o discurso social arraigado neles, ou tentando adaptar-se e tratando o sofrimento que sai disso. 

Abordar em psicoterapia desta forma é uma atuação política e que se pretende transformadora da sociedade, dando ferramentas aos pacientes homens e mulheres no sentido de pensarem sobre o mundo de que fazem parte e tendo a capacidade de agir e transformá-lo, não sendo apenas vítimas de um modo de viver dado ao qual eles não consegue se adaptar (ainda bem!).

Descobri através das pesquisas que já existem correntes feministas de trabalho em psicoterapia e que buscam justamente esse olhar crítico e uma relação igualitária em que o paciente é o considerado a pessoa mais bem posicionada para saber sobre seu sofrimento e sua dor, legitimando seu ponto de vista de forma a dar a ele autonomia para se perceber e não gerando uma dependência dele ao nosso ponto de vista.

Sem querer, sem saber e sem rotular, a prática que faço ia de acordo com diversos dos princípios que foram destacados em alguns textos que encontrei sobre a abordagem da psicoterapia feminista. E fiquei muito contente em poder aprofundar e repensar de forma mais consciente e até gerando uma rede de autoras a quem posso recorrer para compreender e trocar experiências!

Vou continuar me preparando para a fala e na expectativa de trocar ainda mais com os colegas no dia do Simpósio!

Se souberem de mais material ou grupos que debatem sobre o assunto, comentem aqui! Vou adorar poder conhecer mais visões sobre essa relação que há pouco me parecia tão improvável!

Um abraço e obrigada!

Carol

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Existem mais questões entre pais e filhos do que queremos acreditar

Olá, 

Saiu na edição deste mês um texto meu na Revista Psicologia da editora Mythos. 
Minha matéria é a última chamada "Existe mais questões entre pais e filhos do que queremos acreditar". 

Está na página 44 deste link: https://drive.google.com/file/d/0B4lRqFVUqvsnNnFfcmF5VUZLYzA/view?usp=sharing
E também na transcrição abaixo:

Espero que gostem!

Um abraço!
Carol


Existem mais questões entre pais e filhos do que queremos acreditar

Como a terapia familiar pode ajudar no desenvolvimento de estratégias para negociar de maneira saudável com a criança
Carolina Torres*

Influências na relação de uma criança com seus pais

No trabalho psicoterapêutico com famílias, existem diversos âmbitos que devemos considerar na prática clínica que influenciam diretamente a relação que os pais terão com uma criança. Não existe apenas uma forma de se constituir enquanto indivíduo.  Uma família é atravessada por gerações e relações intergeracionais que não podem ficar de fora quando avaliamos e ajudamos na orientação de uma família que se sente despreparada ou em desequilíbrio na forma de solucionar conflitos com a criança.

É importante pensarmos, antes mesmo de acolher uma família, de onde vêm as principais influências na vida de uma pessoa e tratar das relações a partir de todos estes âmbitos a que cada membro da família está sujeito. Estes âmbitos são essencialmente três: o ambiente cultural, ou seja, o contexto onde esta pessoa vive e sob que influências de valores e de ideais ele participa; o ambiente social, ou seja, as principais relações reais externas à família a que está sujeito e a que tem acesso; e também o ambiente familiar, que pode ser extenso, mas que deve se restringir a análise daqueles que realmente geram uma influência direta ao núcleo familiar que estaremos tratando.

Nem sempre é fácil definir este tipo de influência nos três âmbitos e reconhecer ao que cada núcleo familiar está sendo direcionado a idealizar numa criança, sem mesmo perceber, ou seja, de forma inconsciente.

Das relações com o ambiente cultural surgem as demandas e concepções mais amplas que nem sempre são questionadas pela família gerando padrões artificiais sobre o que é a normalidade, sobre a expectativa a que este núcleo familiar deve corresponder e que pode ser muito cruel, exigindo sucesso nas mais diversas áreas de forma idealizada e desumana como na saúde física, na aparência, no status social, na “popularidade”, em ser ou não influente, em ter ou não uma renda que permita adquirir itens específicos, entre outras coisas. Este ideal externo pode ter influência na relação dos pais com seus filhos gerando uma disparidade entre a relação real e o interesse pelo que o filho pode oferecer e do que gosta de fato, podendo gerar uma expectativa massificada que precisa ser desmistificada, para gerar menos sofrimento e proporcionar uma relação real.

Um filho que seja mais tímido, inseguro ou que tenha dificuldade de se expressar em público pode não apenas preocupar, mas também frustrar ou envergonhar pais que idealizaram um filho que fosse popular e “descolado”. Este tipo de idealização pode ter raízes na mídia, na ideia de sucesso contida em filmes, novelas, seriados, propagandas, ou também pode vir a serviço de reproduzir um desejo que os pais têm em relação ao filho de que este possa redimir sua própria experiência na idade dele, “reparando” uma fase deles de insucesso na vida escolar, por exemplo.

Não é raro ver pais que desejam ver em seus filhos uma continuação aprimorada de si mesmos e obrigam as crianças a fazerem um esporte, a tocar um instrumento, a participar de um grupo religioso, de um clube, a fazer um curso específico na graduação ou mesmo a enveredarem numa profissão, apenas porque este era o seu próprio desejo que não foi possível ser realizado. Neste exemplo se misturam as influências dos âmbitos culturais, sociais e familiares.

Desta maneira, a influência social transpassa gerações e precisa de muita reflexão para ser desmistificada e para que os pais consigam se separar da criança, deixando-a viver aquilo que realmente tem a ver com ela e não com os desejos impostos pelos âmbitos culturais, sociais ou familiares.

O problema é que muitas vezes estas expectativas e influencias não aparecem para os pais de forma consciente e por poder transpassar mais de uma geração, sendo repassada por questões não ditas que passaram desde os avós ou bisavós da criança, sem o advento das palavras, mas apenas através de ações que foram sendo reproduzidas como a única possibilidade de existência dentro deste núcleo familiar, não é claro para a maioria dos pais que seja possível encararem o filho de forma diferente, mas é!

Não raro uma mãe que saiu da casa de sua própria mãe para se casar e mudar de Estado, por exemplo, teme tanto que uma filha siga seus passos, que não permite que sua filha trave laços reais com seus pares, aflita de que a criança a deixe sozinha, repetindo sua história. Nestes casos, a criança pode sofrer por não poder expressar seu afeto pelas outras pessoas, e pode, no final do processo, fugir de casa ou traçar um caminho que gere este “abandono”, para poder finalmente travar os laços que quiser fora do controle excessivo causado pela mãe. Este é um exemplo típico da influencia do âmbito familiar.

Quando este tipo de desfecho acontece, chamamos a temática que a mãe teme de “Profecia auto realizadora”, pois o que ela teme acaba mesmo por acontecer, pelas suas próprias ações reativas ao medo de que isso aconteça. O processo é totalmente inconsciente e pode ser trabalhado num processo terapêutico que vá destrinchando as relações intergeracionais até atingir um ponto de entendimento da situação, que pode ser muito anterior a esta própria família que estamos tratando, dependendo do quanto há de conteúdo “não dito” nos núcleos familiares que geraram influência sobre esta criança.

Também é muito comum que mães ou pais tenham uma experiência de reviver a sua própria relação com os pais ao se transformarem eles mesmos em pais, conseguindo compreender melhor alguns eventos e até mesmo elaborando uma relação difícil anterior.

Neste momento pode ocorrer o quadro de “depressão pós parto”, por exemplo, que faz com que as mães que acabaram de ter filhos entrem num processo muito introspectivo que muitas vezes a deixam incapazes de cuidar do próprio filho. Este processo pode ter variadas causas em cada mulher, mas muitas vezes, pode estar associado à uma reação dela em ter que assumir o papel de mãe e revivendo na possível regressão que a maternidade pode trazer de seu próprio processo gestacional e da sua relação com a sua mãe nos primórdios da sua vida.

Os primeiros momentos de nossas vidas são sempre esquecidos por nós, e a experiência de estar presente como a principal responsável por outro ser humano, que é a maternidade ou a paternidade, é um evento que pode ser encarado de diversas formas, mas a principal delas é vivida como uma dedicação absoluta ao outro, como uma simbiose ou até mesmo uma sensação de indiferenciação entre mãe e bebê.

Esta sensação é a que acontece com os bebês, que inicialmente não tem noção de seus limites físicos ou psíquicos, tendo na relação com os pais a possibilidade de compreender aos poucos que é ser um indivíduo separado deles. Quando há uma regressão na mãe gerada por seus próprios conteúdos internos mal elaborados na sua primeira infância, a mãe tem dificuldade de oferecer suporte à individuação da criança e pode gerar dificuldades no processo de desenvolvimento dela. Na confusão mental que a regressão da mãe gera, ela pode achar natural que a criança seja esta continuação de si mesma, sem existência autônoma, e isso pode ser muito nocivo no desenvolvimento do bebê.

O trabalho de orientação familiar

No trabalho clínico de orientação familiar o que podemos fazer inicialmente é escutar a demanda de angústia gerada pela criança em seus pais e ir destrinchando aos poucos o que esta queixa significa: de onde ela vem e a serviço de quem estamos trabalhando. Muitas vezes o que os pais nos pedem é para manter a criança em um lugar de “bode expiatório” dos problemas do núcleo familiar e quando a tratamos e a criança começa a melhorar por se diferenciar dos pais e ter outra perspectiva de si mesma no espaço terapêutico, surge espaço para uma elaboração na família, desestabilizando o funcionamento neurótico do núcleo e é aí que muitos dos pais tiram a criança do tratamento, por medo do que esta necessidade de mudança no ponto de equilíbrio nas relações familiares pode gerar.

Um funcionamento doentio da família pode colocar a criança denominada “difícil” como um foco que serve para desviar, por exemplo, uma dificuldade real no relacionamento entre o casal, que tem como “desculpa” um comportamento que demanda atenção na criança que não os permite encararem um ao outro.

Uma criança é um ser muito sensível a tudo que está ligado diretamente a ela e os pais são seu porto seguro. Quando há uma dificuldade na relação entre eles, a criança se desorganiza mesmo sem ser informada através de palavras de que há algo de errado entre os pais. Há casos em que os pais dizem que a criança não pode estar sofrendo com um desentendimento entre eles, pois eles nunca brigaram em sua frente, ou, acreditam que a criança não entende nada, e que, portanto, uma briga entre os pais não pode ter nada a ver com o seu comportamento mais agitado, por exemplo.

É neste momento que os pais se enganam. Mesmo as crianças que não falam, estão sempre muito atentas e conectadas ao que acontece ao seu redor e, exatamente por não falar ou entender as palavras, que elas se conectam muito mais ao “clima” afetivo e emocional que se instaura na casa e nas relações, sendo ainda mais influenciada pelo “não dito” do que pelo dito. É importante considerar a presença e a capacidade da criança de fazer parte da vida familiar desde o início, mesmo quando ela não fala ou parece não entender nada, e é assim que se vai gerando uma sensação de pertencimento e de segurança na criança, por ser considerada um ser humano pensante tanto quanto todos os adultos da casa, se organizando e se acalmando desta maneira. 

No trabalho clínico é importante orientar os pais nesta busca de justificativas e compreensão profunda de onde vem a demanda por tratamento, mas também é muito importante  poder trabalhar com a criança entendendo a visão dela sobre como esta demanda aparece e como pode ser traduzida aos pais. As sessões em família propriamente dita, com todos reunidos são imprescindíveis na ajuda quando a comunicação está travada entre pais e filhos. A terapia pode acabar retomando uma naturalização do vínculo entre crianças e pais, especialmente quando se propõem situações lúdicas e de descontração através da qual o psicólogo pode intervir, auxiliando para que a conversa possa fluir novamente entre os pares, trazendo espaços de negociação, de compreensão e de afeto que podem ter se desgastado ao longo das brigas e desentendimentos entre pais e filhos.

Negociando com uma criança

O processo de negociação com uma criança parece complexo, mas é o mais simples possível e deve se basear num conceito muito simples de convivência: o respeito e a confiança.

Não é raro vermos adultos que lidam com crianças como se elas fossem bichinhos sem consciência, que não precisam ser levados em conta intelectualmente em nenhuma situação e que apenas são cuidados e transportados de um lado para o outro sem haver uma comunicação verbal que considere a vontade da criança. Se não há uma comunicação sobre o que está indo fazer ou outros detalhes do que acontece a sua volta, como a criança vai irá desenvolver a capacidade de negociação?

Neste tipo de relação não há nenhum tipo negociação e a criança não aprende a se colocar e não consegue se sentir segura e confiante no adulto responsável por ela. Ela pode nutrir um vínculo afetivo, mas se sente desamparada e completamente fora do controle de sua própria vida, com angústias que podem surtir efeitos colaterais variados, como a enurese noturna a irritabilidade, a dificuldade de expressão verbal, agressividade, terrores noturnos, entre outros.

É claro que não iremos oferecer a uma criança o controle total sobre sua própria vida, pois ela depende de nós, adultos, para viver durante um longo período de sua existência. Porém é sempre possível oferecer algum nível de escolha a ela, nem que seja entre um suco de um sabor ou de outro, um brinquedo de uma cor ou de outra, um lugar ou outro para sentar-se, o colo de um adulto ou de outro, entre tantas outras pequenas ações que parecem banais, mas que dão aos pequenos um exercício muito importante sobre como funcionam as escolhas e uma noção mínima de controle sobre sua vida, que afinal, se baseia em sequencias de pequenos momentos como nos exemplos que demos.

É também essencial que se comunique às crianças sobre o que irá acontecer na rotina delas e manter de fato uma sequencia de atividades que sejam mais ou menos previsíveis para que as ajude a se organizar internamente. Engajar a criança em tarefas simples como ajudar a organizar sua mochila ou lancheira para a escola no dia seguinte, marcar num calendário quantos dias faltam para um evento importante, saber o que irá acontecer na sequencia de dias, seja no período letivo ou durante as férias ou finais de semana, entre outras coisas. Eventos marcantes e que geram mobilização emocional, como uma doença na família ou um luto precisam ser compartilhados com as crianças de alguma maneira, para que elas possam também elaborar este fato, ao modo delas. Não existe um assunto que não possa ser tratado com uma criança, mas ele não deve ser tratado de uma forma “adultizada”. A criança tem seu universo simbólico e seus recursos para lidar com as situações, mas não deve ser exposta a respostas sobre o que não perguntou, mas se há interesse, ela deve sim ser participada dos eventos importantes, especialmente se tiver a ver com a morte de algum ente querido.

Na conversa com crianças maiores que apresentam dificuldades que preocupam seus pais, é possível que se encontrem num processo de muita insegurança, e que promovam brigas em relação a toda e qualquer coisa que os adultos a peçam. É comum que as crianças não aceitem pedidos simples como para tomar um banho, fazer uma lição de casa, guardar brinquedos, arrumar o quarto, ou mesmo comer um vegetal, é preciso ter muita paciência para conseguir promover uma mudança em sua noção de individualidade e também tentar perceber de que maneira se está encarando esta criança, para não fixá-la neste lugar de criança “problema”, impossibilitando através deste olhar que ela possa ser ativa em suas decisões e que possa sair do papel dado a ela pelo núcleo familiar. Por pior que o rótulo de “problemático” seja, ele é um papel exercido por ela e que ela sabe representar. Por conta disso é preciso oferecer a possibilidade de que ela exerça outros papéis, e só os adultos podem ser capazes de dar espaço para que ela dê respostas espontâneas, oferecendo um espaço de acolhimento que lhe faça sentir segurança em arriscar agir de outra forma e a partir daí decidir que papel prefere exercer.

Não é possível e nem justo exigir algo da criança, como uma postura de responsabilidade e maturidade quando se trata ou encara a criança em outros momentos como um bebê, incapaz de participar das coisas. É preciso ter consistência e respeitar o que se espera dela com clareza. É claro que para os pais a criança será sempre um pequeno a ser cuidado, mas nem por isso é impossível perceber seu crescimento e oferecer a ela situações de maturidade e de responsabilidade, sempre de forma gradual e com o benefício da dúvida, para ela possa errar e aprender aos poucos como lidar com a responsabilidade oferecida. É importante que as exigências feitas façam sentido para a criança e que não seja algo aleatório apenas porque se quer dar uma tarefa a ser cumprida. É essencial conversar sobre a razão desta tarefa ser responsabilidade dela e sua importância ao fazer isso.

O mais importante é ter em mente que as relações são sempre perpassadas por outras relações e que ter respeito pela criança, como outro ser humano, é o melhor que um pai  ou mãe podem fazer. Tentar deixá-la ser quem ela é e não uma continuação de si mesmo. Lembrar que se cria um filho para ser feliz e não para cuidar de nós ou para realizar o que nós mesmos não conseguimos realizar. Essa liberdade e respeito é o que pode gerar uma facilidade na negociação com uma criança considerada “difícil” e também com qualquer outra criança e também adulto. Devemos conseguir ser consistentes, inspirar confiança e tratar as crianças como elas são: seres autônomos e livres e, principalmente, independentes de nossa determinação.

Deixemos as crianças serem quem elas são, sempre orientando, dando exemplos e inspirando os valores humanos que acreditamos, mas sem impor ou diminuir as aspirações que surgirem deles, e veremos como elas são capazes de nos surpreender, quando recebem esta liberdade e confiança.


*Carolina Torres é psicóloga clínica e pedagoga em educação infantil. Atua em consultório particular e na Escola Alecrim. Autora do Blog “Existe Psicologia em SP” (www.existepsicologiaemsp.blogspot.com) que trata de temas de psicologia, educação e cultura. Contato através do e-mail: torres.carolina@gmail.com ou do telefone 11 9 9327 4319.


quinta-feira, 23 de junho de 2016

Quando trabalhei com autismo, ao acaso

Olá, 

Escrevo hoje para contar outra experiência específica de trabalho, com o autismo. O que aconteceu foi que, no quarto ano de faculdade, apareceu a possibilidade de fazer um estágio, extra curricular que dava uma mini bolsa na mensalidade e a possibilidade de entrar em contato com pacientes. 

Era na DERDIC, uma escola e um centro de atendimento para crianças e adolescentes com deficiência auditiva. Passei por uma entrevista em grupo e por uma dinâmica muito estranha em que nos pediam para brincarmos todos juntos em silêncio com uma caixa com uns brinquedinhos no chão. Por algum motivo, selecionaram meu brincar em silêncio como suficientemente bom para trabalhar com eles e passei ater aulas de LIBRAS, a língua brasileira de sinais e a atender em dupla um grupo de crianças em uma sala ao lado de uma sala em que outra dupla atendia suas mães.

Foi uma experiência incrível, em que pude desmistificar preconceitos e entrar em contato com crianças que apesar de não escutar uma palavra do que eu dizia se comunicavam perfeitamente, brincando de forma incrivelmente rica e interessante, formando vínculos conosco e demonstrando aprendizagem, afeto, braveza, frustração, tristeza e tudo o que poderíamos perceber em uma criança falante, da mesma forma. Foi muito enriquecedor. 

Ao final deste ano, me convidaram para, lá mesmo na DERDIC, participar também de um estágio de atendimento clínico a crianças ou pais de crianças da instituição. Imaginei que chegaria a mim um deficiente auditivo, pois ali eram encaminhadas as crianças que não falavam até certa idade. Pois bem, no diagnostico diferencial, caiu em minhas mãos uma suspeita diagnóstica de autismo. Eles também tem dificuldade com a fala e às vezes aparecem por lá. 

Qual não foi minha surpresa quando percebi que esta criança, com a suspeita diagnóstica de autismo, também era capaz de comunicar de variadas formas seus desejos, frustrações, alegria, entre tantas outras coisas, fazendo vínculo comigo?

O ano inteiro se passou e eu me formei na graduação. Levei meu caso da DERDIC para meu aprimoramento, que foi no ambulatório de autismo e psicose infantil da Clínica da PUC, inspirada no trabalho com ele. Passei mais um ano atendendo o menino que foi comigo para o consultório, depois de eu ter concluído o aprimoramento. Alguns meses depois, a mãe, que morava muito longe, conseguiu uma escola especializada em casos como o dele, de período integral, o que inviabilizaria a continuidade do atendimento. 

Atendi ele e outros casos graves no aprimoramento, mas tenho certeza absoluta que as crianças com deficiência, e este menino, que mora no topo de minhas maiores experiências clínicas de atendimento até hoje, me ensinaram o mais importante sobre o atendimento a qualquer ser humano: cada mini avanço é um passo de gigante. 

No caso dele, que tinha tantas limitações tão imensas na expressão, na vinculação, na possibilidade de estar com outras pessoas, cada sessão era a possibilidade de ver vida em seu olhar, de ver sentido em seus sons e em ver vinculação entre nós. Isso era um avanço absurdo. Quando passei a tender crianças sem nenhum diagnóstico complicado, adolescentes ou adultos, meu olhar já não era o mesmo. Minhas pontuações já não eram as mesmas. Minha sensibilidade para os detalhes, que também são importantes em outros casos, não era a mesma. 

Não sei o que de fato pude fazer por ele. Espero que algum avanço na possibilidade de confiar em alguém, de estra com outro ser humano e se sentir seguro. Mas ele, o que fez por mim não tem tamanho. Ele, com todas as reflexões, cuidado, necessidade de observar os pequenos e minúsculos detalhes, me tornou uma psicoterapeuta. Sem dúvida. 

Continuo indicando a todos que buscam atendimento para casos graves como o dele, o Espaço Palavra, que é o nome do ambulatório onde me formei na PUC-SP. O atendimento da questão do autismo lá é cuidadoso e de excelência até hoje. Para entrar em contato liguem no 11 3862-6070. 

E para o cuidado com a deficiência auditiva, procurem pelo DERDIC, espaço de apoio a toda a comunidade,além de oferecer atendimento psicológico e educação especializada. Contato através do 11 5908-8000.

Cuidem de suas crianças! 

Um abraço!

Carol




segunda-feira, 20 de junho de 2016

Quando trabalhei com T.O.C., os transtornos obsessivo-compulsivos



Olá, 

pensando em temas para escrever por aqui, me lembrei de um estágio que fiz no primeiro ano da faculdade no PROTOC, o ambulatório de estudos e tratamento do Transtorno Obsessivo Compulsivo no Hospital das Clínicas, da USP. 

Na época, um amigo meu de classe estava saindo do estágio e precisava de uma pessoa para indicar à vaga e me convidou. Na época, eu ainda estava engatinhando no conhecimento sobre psicologia, não havia feito nenhum estágio e queria muito por a mão na massa. Além disso, por coincidência, uma tia minha, psiquiatra, trabalhava em dupla com o chefe do Serviço em algumas pesquisas e achou a ideia muito animadora. 

Pois bem, fui eu começar a trabalhar na rotina de um centro de pesquisa, conhecer os manuais de transtornos psiquiátricos e começar a entender que existiam nomes para todo o tipo de distúrbio possível e imaginável no comportamento e nos afetos humanos, tudo detalhado a exaustão nas diversas categorias e subcategorias dos manuais. A pesquisadora querida com quem trabalhei brevemente no período em que fiquei por lá, me mostrava e explicava tudo, dando ênfase ao capítulo sobre os transtornos de ansiedade, em especial os obsessivos compulsivos, sobre os quais eu precisaria entender bem para ajudá-la com as entrevistas.

Entrevistas? Sim! Entrevistas. Eu não estava em nada pronta para isso e não eram entrevistas com a população dali do hospital e sim viagens ao interior de São para visitar pessoas com casos muito graves em suas residências, pois eles não conseguiam ir ao hospital. Era um atendimento domiciliar, com entrevistas padronizadas pelo manual no ambiente em que as pessoas moravam. 

Fiz apenas uma destas viagens. Eu era primeiro anista e não tinha nem ao menos feito um treino de entrevista na clínica da faculdade e a vulnerabilidade daquelas pessoas me pegou muito fundo e não tive coragem de seguir trabalhando ali, pois não iria conseguir ajudar. Não ainda. 

Dei algumas desculpas, como o excesso de matéria para estudar na faculdade, ou a falta de interesse pela abordagem que a psicóloga que trabalhava comigo utilizava em sua pesquisa, que era a Cognitivo Comportamental, mas hoje, sei que não era nada disso. Era a angústia de lidar pela primeira vez com algo tão delicado quanto o sofrimento humano. Sofrimento grave, de pessoas em situações muito vulneráveis social e mentalmente. 

O transtorno em si se baseia em comportamentos e pensamentos associados que em teoria ajudam a pessoa a se "livrar" de uma ansiedade muito intensa, mas que na verdade, quando muito intensos, acabam por impossibilitar que a pessoa exerça suas funções mais básicas, pois podem tomar totalmente conta de sua mente e de seu tempo diário. E com isso eu não conseguia lidar ainda. E talvez ainda não possa até hoje, pelo menos não sem a parceria de um bom psiquiatra que dialogue comigo. 

Esse curto período de tempo me serviu para ver muito rápido com o que eu estava indo mexer. Que a coisa era séria e que não seria nada fácil ver tudo o que a mente humana era capaz de fazer com si mesma. 

Certamente me abriu para ser mais cuidadosa e acolhedora com os caso que chegassem até mim!

Indico ainda hoje o PROTOC, aqui em São Paulo, referência absoluta em tratamento e pesquisa sobre o tema. Para entrar em contato com o PROTOC  ligue para (11) 2661-6972. 

E peço a todos que tenham algum conhecido com sintomas de pensamentos, comportamentos obsessivos, ou ambos, que tenham paciência e que busquem a ajuda especializada para que a pessoa possa ter chance se encontrar terapia adequada, medicamentosa, de apoio social, de grupos de acolhimento que a façam diminuir essa angustia tão profunda que o transtorno causa!

Cuidem-se!

Um abraço, 
Carol


quarta-feira, 8 de junho de 2016

Pensando sobre adolescentes que se cortam

Olá, 

Escrevo sobre este tema, por que há algum tempo vem chegado até mim relatos sobre esta "moda" dos adolescentes de se cortarem e isso vem me chamando a atenção por vários motivos. 

O primeiro deles é pela identificação, pois eu mesma, na adolescência, gostava muito de uma banda específica, e sem conhecer esta "moda", usava um plastiquinho que vinha dentro do selo de segurança no CD da banda para marcar o nome da banda no meu antebraço, feliz da vida com este segredo que, na minha cabeça, me aproximava mais deles, marcando-os como uma tatuagem provisória em mim. Coisas de fã adolescente. 

O segundo é por que uma das situações relatadas a mim, veio de uma profissional de uma instituição que abriga crianças em situação de acolhimento e falava sobre o cortar-se ser uma prática comum e difundida entre os adolescentes da casa através da internet como algo "bacana" de ser feito, com adolescentes postando tutoriais de como fazer, como esconder, etc. 

Me preocupou por ser algo massificado pela internet e não pelo fato em si do cortar-se, já que nunca é algo feito para machucar, pelo que tenho entendido. O adolescente, pela fase que está passando na vida, é uma criatura das mais vulneráveis possíveis, por vários motivos: ele não é mais o bebê mais lindo da casa, seu corpo está em fase de enorme transformação e em muitos momentos isso se torna desproporcional, torto, estranho e dá muito medo, na visão deles. 

Além disso, afloram neles os hormônios da sexualidade que está se desenvolvendo e essa sexualização vem acontecendo cada vez mais cedo por diversos motivos, o principal deles, por conta das mídias de massa, sejam as redes sociais, os programas de TV, o Youtube, os jogos de vídeo game, e assim, o adolescente tem acesso a conteúdos que ele não entende propriamente, mas que passa a fazer parte de seu universo simbólico e de fantasias, gerando muita ansiedade e mais medo.

O se cortar, por si só, não é o problema. O problema maior é o que isso vem simbolizar. É claro que nem todo o adolescente está passando pelo mesmo momento e que não vai se cortar pelo exato mesmo motivo. Todos estão em busca de uma identificação com algo que faça sentido para eles. Querem ser alguma coisa, querem se transformar em alguma coisa, têm muita energia e vontade de serem adultos para poderem ser "donos do próprio nariz" e ao mesmo tempo muito medo, por que sabe que ainda não tem as ferramentas ainda para isso. 

O que está em jogo é a auto estima, a aceitação, o olhar do outro, o reconhecimento. Eles querem ser amados, mas não sabem como, nem por que, nem por quem. Querem se transformar em algo admirável, mas morrem de medo de passar vergonha, de serem julgados pelos amigos, pelo mundo de forma geral. 

A cultura do chamado "bullying" que chama assim agora, mas sempre existiu como humilhação dos coleguinhas que eram excluídos de um grupo por nenhum motivo relevante, mas apenas porque alguém decidiu assim, vem do medo dessa vergonha que todos tem medo de passar e que alguns, com tanto ou mais medo que os outros, acabam por incutir nos outros como defesa, para não serem alvos da exclusão. Ou seja, quem pratica o bullying, tem na verdade muito medo de sofrer o bullying. O que gera esse processo todo é conhecer muito bem a necessidade de acolhimento e negá-la a alguém por um motivo qualquer. 

O desejo de se cortar, pode vir de diversas origens emocionais diferentes, mas fala de algo muito simples, que é a necessidade de se sentir vivo. O limite corporal no adolescente é muito importante para ele. As emoções são fortes e intensas, as crises absurdas, chora-se muito e muito alto, dá-se gargalhadas altas e se briga sempre com volume e confusão. Há a necessidade absoluta de ser notado. Quando há algo que não parece funcionar na vida do adolescente (e sempre há), como não se sentir notado por aquela pessoa que se ama, não corresponder a expectativa de um grupo (de amigos, de familiares, de professores, ou qualquer outro), há uma sensação da mesma forma intensa de frustração. 

Tudo, na cabeça deles, é questão de vida ou morte, há uma dramaticidade absurda que não há meios de eles entenderem as próprias emoções de outra forma, por conta da injeção hormonal e da alta expectativa que eles tem sobre começar a vida social, afetiva e emocional. 

O cortar-se pode ser uma forma de gerar um alívio a todas essas dores internas incontroláveis, passando para um foco em uma dor externa e sobre a qual ele tem total controle. Pode também ser esta maneira, de, diante da sensação de apatia nas relações físicas que ele não está apto a ter ainda, sentir seu corpo, seu limite corporal, ver seu limite e sentir-se vivo. Também é possível ser por conta da necessidade de chamar a atenção das pessoas, adultos ou pares adolescentes para si, como um pedido de socorro. 

O principal não é punir o ato em si. Não há como se aproximar de alguém desta maneira, apenas através da punição. O principal é compreender que há, na vida emocional daquela pessoa, algo que está errado. O melhor que se pode fazer é conversar, não sobre o cortar-se em si, mas sobre como a pessoa está se sentindo, abrindo diálogo para isso na relação com ele. 

É muito comum encararmos as crianças e os adolescentes como "café com leite" nas discussões importantes da vida familiar, escolar, ou de qualquer grupo, sem incluí-los nas informações sérias e importantes e sem conversar com seriedade, ouvindo e levando em consideração o que sentem e pensam sobre algum assunto.

O cortar-se pode ser uma forma de eles dizerem aos adultos que estão sentido, que estão pensando, que estão sim sendo afetados por alguma coisa. Mesmo que uma situação seja grave, como uma separação, uma violência, uma agressão, ou mesmo uma morte na família, se não é tratado com o adolescente ou a criança com algum tipo de verdade, isso pode sim gerar sintomas como este ou como outros (anorexia, bulimia, depressão, ansiedade). 

É preciso abrir o canal de comunicação com eles, do contrário, vão sugar a informação sem compreendê-la e isso pode gerar muita angústia e sintomas na vida cotidiana deles, trazendo prejuízos na formação de identidade deles e na vida emocional que vão entender que é possível.

Ouça, fale, abra o diálogo sobre as coisas com seus filhos, sobrinhos, alunos, com as crianças e adolescentes de sua vida. Isso fará uma grande diferença na relação deles com si mesmos, com vocês e com a própria vida, trazendo segurança e tranquilidade para que eles decidam quem querem ser.

Boa sorte e um abraço!

Carol

domingo, 5 de junho de 2016

Sábados | 14h as 17h | Centro Cultural São Paulo: Psicodrama Público Gratuito



Olá, 

Neste último sábado, 4 de junho, participei de uma sessão de Psicodrama Público no Centro Cultural São Paulo, na estação Vergueiro do metrô, recomendada por minha tia, psiquiatra e por minha prima, psicodramatista em formação. 

Eu já tinha participado de uma sessão há alguns anos atrás durante o curso de formação de uma colega minha da faculdade e havia ficado muito bem impressionada com a força desta forma de trabalho com a psicologia.

O psicodrama é uma encenação coletiva e de improviso, dirigida por uma psicologa, psicodramatista, que sugere um tema ao redor do qual os integrantes podem improvisar com seus conteúdos pessoais, com elaborações de seu mundo interno de fantasias e que tem a possibilidade de elaborar insights, catrases e elaborações pessoais de seus conteúdos, mas também de haver a elaboração de temas da sociedade, atuando como ferramenta poderosa de exercício da cidadania, da convivência com pessoas da comunidade que de outra forma não teriam esta convivência, diálogo e troca. 

O psicodrama público é um espaço de direito, aberto e altamente recomendável a todos, que tenham ou não uma questão pessoal a trabalhar, por enriquecer através da troca que ocorre sempre, havendo ou não a participação ativa do participante. 

As sessões acontecem todo o sábado das 14 às 17 horas e o participante pode chegar a qualquer momento da sessão e fazer, mas o ideal é chegar no hora, para entrar desde o aquecimento para ter a melhor participação possível e entrar na sintonia do grupo que se formará no dia. 

O Centro Cultural São Paulo fica aqui: Rua Vergueiro, 1000 - Paraíso, São Paulo - SP
O telefone para maiores informações: (11) 3397-4002
Indico para quem tem interesse em conhecer e também para quem procura um espaço de reflexão e elaboração de suas questões. 

É um espaço gratuito! Aproveitem!

Um abraço, 
Carol

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Sobre a Cultura do Estupro



Olá, 

andei um pouco ausente do blog, em parte por excesso de trabalho e em parte por conta de me sentir incapacitada a dizer algo depois do evento escabroso da semana passada do estupro coletivo de uma garota de 16 anos no Rio de Janeiro.

O que está em jogo neste texto não é o caso em si, apesar de ele ser absolutamente arrebatador, e de por conta dele mesmo eu não ter conseguido escrever nada por aqui, ou por lugar nenhum, nem pensar com clareza ou tomar uma posição e falar alguma coisa. 

A minha posição é clara. Há muita coisa errada na relação que a nossa sociedade tem com o papel das mulheres. Não espero aqui explicar os motivos históricos deste problema, nem convidar ninguém a algum movimento feminista ou algo do tipo.

Minha proposta é apenas pensar junto com vocês, como é possível que tantos rapazes possam não apenas achar que seria uma boa ideia cometer o crime do estupro coletivamente, como também divulgar o ato nas redes sociais como um troféu.

O que passa pela minha cabeça é que os rapazes acreditam que fizeram algo digno de ser compartilhado, algo que lhes geraria uma fama positiva, que sem dúvida, acabou gerando um movimento dividido em dois lados: os que acreditam e os que não acreditam no que aconteceu. Uma calamidade absoluta, dado que o ato está gravado.

Se hoje, em muitos lugares do Brasil, tivemos manifestações muito fortes contrárias ao que estão chamando de "Cultura do Estupro", é por que algo neste compartilhamento violento fez as pessoas pensarem. Pensarem sobre como estão educando a sociedade, em especial as crianças, sobre o que é ser uma mulher e o quanto (?) ela vale. 

As mulheres são educadas as serem cuidadosas com diversas coisas, por que os meninos "são assim mesmo", enquanto os meninos estão sendo educados para serem agressivos, violentos, objetificarem as mulheres com muita naturalidade.

A mensagem não vem claramente, nem verbalmente, mas vem de forma a inferiorizar o papel feminino e a desumanizar a mulher, colocando-a como um objeto, desde a sua "função" mais básica. 

As mulheres são as esposas, são as mães, são as profissionais de menor valor, tem as opiniões de menor valor, tem o mesmo emprego apenas se ganhar menos. São desmerecidas no mercado de trabalho por que podem engravidar e trazer um "prejuízo" ao empregador. 

Na vida real, as mulheres, que trazem a humanidade à luz, são meros objetos. Os homens aprendem isso nas revistas, com os pais, tios e amigos que os levam para serem "iniciados" nas casas de prostituição, que assistem à industria pornográfica que além de gerar tráfico de mulheres, fornece uma imagem absolutamente centrada no prazer do homem e trata os relacionamentos de forma agressiva e irreal, gerando um imaginário em que a violência está permanentemente associada ao sexo.

Este imaginário não é real e assistir e este tipo de produção financia não apenas uma vida de fantasias sexuais doentias, atrapalhando muito a forma com um homem vai conseguir sentir prazer depois de assisti-los, como também financia a produção real de demanda nesta indústria que violenta de diversas formas as mulheres que trabalham nela. 

Uma menina ou uma mulher que passa por abuso, por situação de violência sexual, sendo ela física, emocional ou psicológica, acha que tem culpa nisso, pois a sociedade ensina as meninas a terem cuidado com o que fazem, o que falam, por onde andam, como se comportam e como se vestem, como se isso justificasse a violência do homem. 

Muitas vezes, dentro ou fora deste mercado do sexo e da pornografia, as mulheres acabam por entrarem numa vida de culpabilização tão intensa que sua auto estima se esvai e elas acabam por entrar em mecanismos de auto destruição severos, como o abuso de drogas, ou mesmo se colocam em situação de vulnerabilidade ou ainda chegam a cometer o suicídio.

Em certas culturas e religiões, e mesmo na nossa mídia de massa, dadas as devidas proporções, o homem é tratado como "um animal que não consegue reprimir seus instintos", e o papel da mulher seria se casar para satisfazer o desejo dele e se esconder dos outros animais que não são seus maridos. Isso está certo? Absolutamente não!!!

Não há nada que justifique que esta educação tão díspar entre os gêneros, que mesmo que com bases religiosas se perpetuam sem críticas, já que as religiões são antigas e podem ter surgido em uma época em que a mulher não era vista nem como ser humano.

Hoje já tivemos inúmeros avanços. Votamos, temos direitos de existir independentemente de nossos pais ou de nossos maridos, podemos até não ter maridos, trabalhar, mas visão que é passada aos homens e mulheres que vem chegando, ainda é a pior possível. 

Ainda se duvida da violência sofrida por uma mulher baseando-se apenas na conduta dela, como se ser livre, ter uma vida sexual ativa, estar solteira, andar sozinha, beber, sair, falar palavrões, não ter uma religião, ter amigos homens, ou qualquer outro comportamento pudesse justificar um estupro.

Veja bem, não há nada que possa justificar a violação do corpo de alguém. O limite entre dois corpos é bastante claro. Não há a possibilidade de alguém entrar dentro do corpo de outra pessoa sem que a pessoa queira. Simples assim. Independente do que a pessoa faz antes disso ou de seus hábitos na vida cotidiana. 

O nosso corpo é nosso. Mesmo sendo uma mulher. Tanto quanto o corpo de um homem é dele. Não é possível que uma premissa simples como essa não possa ser seguida.

E ela não é. Por que o corpo da mulher é usado como objeto em todo e qualquer meio de comunicação de forma banalizada. O corpo da mulher vende produtos, dá audiência a músicas, a filmes, peças de teatro. A sexualização da relação entre homem e mulher, de forma muito caricata e agressiva vende enredos de novelas, de filmes, seriados. A misoginia e a homofobia, além de outros preconceitos graves raciais, religiosos e de classe social, vendem programas de humor e dão suporte às conversas de bar e entre amigos nas redes sociais.

Uma novidade para vocês é a seguinte: assistir a estes programas e rir deles, comprar estes produtos, consumir o mercado do sexo ou a pornografia em vídeo, impressa ou de qualquer maneira e até rir das piadas de seus amigos sobre uma mulher é colaborar para cultura do estupro. 

Ela já é forte o suficiente e não precisa de incentivos e sim do contrário.

Numa analogia simples, podemos dizer que consumir os produtos da cultura do estupro e dizer que é contra ela, é equivalente a consumir produtos de origem animal e dizer que é contra o sofrimento dos animais.

Não é possível estar dos dois lados ao mesmo tempo. Ou você se posiciona de um lado ou do outro. 

Nesse sentido, acho que anestesiamos o raciocínio e a reflexão sobre um tema difícil por que a cultura é tao dominante que fica "chato" sair da norma imposta por ela. 

É como se sentir indignado com o tema, mas dizer "Não, mas eu só vou assistir a esse videozinho pornô hoje, não faz mal a ninguém", ou então "Não, mas só vou rir dessa piadinha sobre a mina que meu amigo comeu e fotografou para não ficar chato", ou ainda, duvidar deste caso tenebroso desta forma: "Nossa, mas será que essa menina não estava pedindo, ou que ela gostava destas coisas?". Não, ninguém está pedindo um estupro. Não importa do que ela goste! Se a pessoa está pedindo, não é mais um estupro, aí a coisa se transforma em sexo, que é ótimo, quando as pessoas querem fazê-lo. Se a menina estava desacordada, ela não tinha como querer. Simples assim. 

Enfim, difícil demais falar sobre isso, pensar sobre isso. 

Só espero, do fundo do meu coração, que esta tragédia absurdamente revoltante tenha servido para as pessoas pensarem sobre como estão agindo, como estão pensando, como estão aceitando o que lhes é imposto goela abaixo, como estão tratando seus parceiros, seus filhos, como estão educando suas crianças, como estão contribuindo para essa atrocidade e como podem mudar o montante de sua contribuição. 

Vamos continuar lutando contra essa disparidade absurda entre como o mundo deveria ser e como ele acaba sendo, por força de velhos e tenebrosos hábitos?

Vamos nos incomodar e com isso parar para pensar? Espero verdadeiramente que sim!

Um abraço, 
Carol

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Confusão de línguas entre as pessoas


Olá, 

Estudando sobre a educação infantil, existe um texto muito interessante que trata sobre a chamada “Confusão de línguas” entre o adulto e a criança, que realmente falam através de pontos de vista absolutamente diferentes, por atravessarem contextos muito particulares de vida, que estão distantes na forma como enxergam e compreendem o mundo.

Pois bem, o que há de mais rico na raça humana é a possibilidade de comunicação entre as pessoas. E essa é ao mesmo tempo nossa maior vantagem e maior armadilha também.

Temos a impressão de que falando comunicamos exatamente o que queremos dizer e na verdade não é possível comunicar claramente, pois há sempre um ponto de vista do qual estamos falando e outro que recebe aquelas palavras, de acordo com seus contextos, valores, experiências próprias.

Não estou dizendo que a comunicação não existe, mas afirmo com toda a certeza de que há sempre uma confusão de linguagem, mesmo entre pessoas que se conhecem bem e que julgam saber do que a outra pessoa está falando. De fato, nunca sabemos exatamente do que a outra pessoa está falando.

Podemos tentar mostrar uma interpretação daquilo que ouvimos, ou podemos puxar na nossa experiência de vida e de conhecimento de mundo algo que se relacione ao que esta pessoa está dizendo e assim, conseguimos nos colocar em seu lugar, ou trazê-la até onde estamos, aproximando-nos um pouco uns dos outros.

Essa aproximação, real ou imaginária, criada pela comunicação é a maior riqueza do ser humano, pois podemos sentir e reviver situações e emoções, conhecendo coisas que não vivenciamos diretamente, ampliando nossa potencialidade de compreensão de situações humanas possíveis, gerando um saber maior, de empatia com situações diversas, de crítica ao que nos é dado como verdade, e que pode ser repensado como apenas mais um ponto de vista possível, dado o contexto de onde vem tal opinião ou informação.

Acredito que haja uma confusão de línguas entre adultos também, em todo e qualquer contexto, seja familiar, social, de trabalho, amoroso. Não conseguimos entender plenamente o outro. Não conseguimos nem enxergar plenamente o outro de forma a não projetar nosso conteúdo interno nele. E tudo bem. Tudo bem, por que isso enriquece o outro de algumas maneiras e tudo bem, por que existimos também por conta destas projeções que foram feitas em nós, desde muito pequeninos, Às vezes até antes de nascermos. Sem elas, não estaríamos vivos.

Porém, é importante se lembrar que essas ideias que o outro coloca sobre nós não é o que nos define. Essas coisas ajudam a conhecermos melhor o outro e a escolhermos se queremos ou não este papel que nos é dado por ele. Se não quisermos, basta sair do papel, mudar de posição na relação com o outro e, por consequência com si mesmo.

Vale lembrar que nem sempre percebemos que o outro nos impõe um papel. Só percebemos quando há um incomodo em agir e ser de uma dada maneira, que nos parece natural e a única possível.

A boa novidade é que não há apenas uma maneira possível de ser. Há sempre vários caminhos a escolher, mesmo quando parece que não há alternativa. Se algo te incomoda em você mesmo, tente buscar quando você começou a agir desta forma e quando isso passou a te incomodar e esta será a dica mais preciosa para você começar a compreender porque age desta forma e, mais importante, para quem age assim.

Se a resposta não for você mesmo, está na hora de repensar se vale a pena sacrificar algo importante em você por outra pessoa, que provavelmente não está sacrificando algo por você. E, se ela também estiver, a relação está desequilibrada pelos dois lados. 

Cuidem-se!

Um abraço!
Carol