quinta-feira, 24 de abril de 2014

Filhos que mandam em seus pais

Olá, 
Neste texto apresento um trecho de uma monografia de conclusão do curso de especialização em "Teoria Psicanalítica". Nele trato da discussão sobre as novas configurações familiares que vem sendo cada vez mais aceitas e vividas pelas famílias na atualidade e como elas se dão e que impacto têm na vida das crianças e adultos que pertencem a elas. 
Pretendemos pensar na história da família enquanto instituição e em seu percurso para as novas configurações hoje existentes. Aprofundaremo-nos nas conseqüências destas reorganizações, buscando a origem da perda da função simbólica original do lugar do pai e da autoridade que este lugar representava para a criança no contexto familiar, hoje desfigurado.
A noção de família pode ser entendida como “1. Pessoas aparentadas, que vivem, em geral, na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos. 2. Pessoas do mesmo sangue. 3. Ascendência, linhagem, estirpe. (...) 9. Comunidade constituída por um homem e uma mulher, unidos por laço matrimonial, e pelos filhos nascidos dessa união. 10. Unidade espiritual constituída pelas gerações descendentes de um mesmo tronco, e fundada, pois, na consangüinidade. 11. Grupo formado por indivíduos que são ou se consideram de um mesmo tronco ancestral comum e estranhos admitidos por adoção. (...)” (Ferreira, 1988). Vemos que no dicionário Aurélio, a noção de família mais tradicional ainda é a referência mais forte. Vamos, a partir de outras leituras, dialogar com as novas configurações e com sua relação com a questão da autoridade.
          Para começar a pensar a questão da função paterna e seu declínio na família, faremos um levantamento inicial de como se deram as diversas formas de organização familiar ao longo da história. Para isso, utilizaremos a pesquisa feita por Elizabeth Roudinesco em seu livro “A família em desordem”, de 2003.
            No prefácio de seu livro, Roudinesco coloca que as minorias, antes perseguidas, sempre ficaram à margem de uma organização familiar tradicional, mas que atualmente estas minorias (como os homossexuais, por exemplo) querem se adequar aos modelos tradicionais de família burguesa. A autora coloca que este fato pode ser um sinal de que está havendo uma decadência da autoridade sob todas as formas, já que a antiga ordem de colocar a minoria à parte já não funciona hoje em dia.
A autora coloca que a família ocidental foi desafiada pela irrupção do feminino e passou a dar papel central à maternidade. O lugar do pai foi questionado e ele se vê agora sem função simbólica: o pai não é mais pai e a existência da família está ameaçada.

Roudinesco descreve três grandes fases pelas quais a família passou. Em primeiro lugar houve a família “tradicional” que serviu especialmente para assegurar a transmissão de patrimônio: nela o casamento era arranjado entre os pais sem levar em conta a vida afetiva ou sexual do casal e a ordem era imposta pela autoridade patriarcal.

A segunda fase, dita “moderna”, surge entre os séculos XVIII e meados do XX. Ela se fundou no amor romântico e nela o casamento era baseado na reciprocidade dos sentimentos, ainda que a divisão de trabalho entre os cônjuges fosse um fator importante neste momento.

Finalmente, na família dita “contemporânea” ou “pós-moderna”, que surgiu após 1960, o casamento surge da busca dos indivíduos por relações íntimas ou por realização sexual. Nesta fase a relação de autoridade parental se torna mais problemática por conta dos divórcios e recomposições conjugais que vão surgindo, de acordo com esta busca dos indivíduos por realização afetiva pessoal.

Na época moderna, a família deixou de ter um paradigma divino ou Estatal, apesar de ainda manter-se como a instituição humana mais sólida da sociedade. Sucedeu-se àquela família autoritária, a família mutilada de hoje, em que o pai, que antes dominava, perdeu sua posição.

O pai dos tempos arcaicos era a encarnação de Deus, reinava sobre as famílias e castigava os filhos, podendo decidir-se a se desfazer de um filho, se deixasse de reconhecê-lo, na lei romana. O cristianismo impôs outra lógica, a da paternidade biológica, que deveria corresponder a uma função simbólica. Neste período, o direito de paternidade não decorria mais da vontade de um homem, mas da vontade de Deus, ou da igreja.

O pai só poderia ser pai, na medida em que a mulher lhe fosse totalmente fiel. Ele só é o procriador pela transmissão da sua nomeação (do sobrenome), do seu sangue ou da sua raça. Através da doação de seu nome e pela visibilidade de uma semelhança com o seu filho é que o pai da Idade Média se tornava corpo imortal, pois seu nome e seus traços seriam carregados por seus descendentes, que perpetuariam sua imagem.

Esta nova necessidade de a mulher designar o pai para que este seja reconhecido com tal, possibilitou a irrupção do feminino, que segundo Roudinesco, surge como uma ameaça à autoridade paterna, anteriormente exercida. Agora cabe à mãe decidir, através do casamento, se o pai poderá exercer a função de autoridade em relação aos filhos, que, por sua vez, só se relacionarão com seus pais enquanto necessitarem se preservar e se criar. Ao cabo deste período, rompem-se os laços com os pais.

Após a abolição da monarquia, o pai passa a dividir com a mãe a herança psíquica e carnal. Não é mais o soberano e os filhos são vistos como “mais da mãe” do que do pai. A autoridade paterna entra em conflito com o poder dado às mães.

Na era do desenvolvimento industrial o posto de “deus, soberano ou patriarca”, anteriormente ocupado pelo pai, passa a ser o mesmo que o do patrão, que defende o operário da barbárie e lhe garante trabalho e habitação.

Neste sentido, a autoridade paterna vai desmoronando, e o pai passa a ser mais um no núcleo familiar, sem poder inquestionável e sem poder mandar em seus filhos, a não ser que a mãe lhe permita exercer este papel. Ainda que a mãe o permita exercê-lo, o pai está desvalorizado, em relação ao seu antigo papel, e se sente desta maneira. Divide com a mãe a tarefa de cuidar dos filhos e de prover os bens materiais do lar.

A ordem familiar econômico-burguesa que surge aí se baseia em três níveis de hierarquia: a autoridade do marido, a subordinação das mulheres e a dependência dos filhos. O feminino, que deveria se colar à maternidade, se desvincula dela. O antigo papel do pai dominador dá lugar a uma paternidade ética, subjugada aqui, a uma avaliação do estado. O pai não pode abusar do poder a ele outorgado, ou a paternidade lhe será retirada.

A família ganha status de matriz de uma nova sociedade. O pai é reinvestido de poder, mas o exercício deste poder deve estar de acordo com a declaração de direitos do homem e do cidadão. O casamento se transformou em um contrato livremente consentido entre um homem e uma mulher que durará apenas enquanto durar o amor. O pai tem obrigações morais com aqueles a quem governa e será privado do direito de pai, se não as cumprir.

Numa reflexão mais voltada à família tradicional brasileira, Maria Rita Kehl em seu artigo “Em defesa de uma família tentacular” nos lembra que a no Brasil, esse modelo de família foi herança de uma sociedade escravocrata e nossas primeiras famílias eram comandadas pelo senhor de terras. O modelo seguinte foram as famílias urbanas que queriam se “afrancesar”, se fechando sobre si mesmas para não se deixar contagiar por camadas inferiores. (Kehl, 2003).

A família nuclear burguesa no Brasil era isolada e a privacidade de seus membros vigiada. Só se abriam a um público selecionado e “do mesmo nível” para submeter, especialmente as mulheres, à avaliação de pretendentes. Mas também passou a ruir em sua própria estrutura com o advento da expansão dos meios de comunicação que explodiu até o isolamento das famílias mais conservadoras. A família então, deixa de ser uma sólida instituição e passa a ser um agrupamento circunstancial e precário regido pela lei dos afetos e dos impulsos sexuais.

Roudinesco apresenta também a idéia da irrupção do feminino, como marco dessa grande mudança. A mulher que tem um sexo e que pode se emancipar independentemente de sua relação de mãe ou de esposa. Após a revolução feminista, com seu direito ao voto e com a possibilidade de igualdade nos diversos campos, a mulher elimina o “trono” patriarcal.

As grandes guerras trouxeram, para as mulheres, a necessidade de tomada decisões, na ausência dos homens, o que contribuiu para a irrupção do poder das mesmas. O advento das novas tecnologias médicas, desde os métodos anticoncepcionais - como a camisinha, o DIU e a pílula - até os novos métodos de concepção, possibilitaram às mulheres conceber um filho - decidir e planejar a concepção - de acordo com o seu desejo. A possibilidade de controlar o próprio corpo e conceber através da inseminação artificial e das mais diversas formas de planejamento familiar desvinculou maternidade e casamento, liberando a mulher da submissão ao marido e aos filhos.

A partir dessa virada, os laços conjugais já não escondem mais a base erótica – portanto, instável – de sua sustentação. Separações novas uniões ao longo da vida dos adultos gerou um novo tipo de família, que Kehl vai chamar “tentacular”. Segundo ela, o núcleo central da família foi implodindo atravessado pelo contato intimo com adultos e crianças vindos de outras famílias. Cada uma dessas árvores hiper ramificadas guarda o traçado das moções de desejo dos adultos ao longo da vida.

Novas possibilidades surgem e geram essas diferentes configurações familiares. Os casais passaram a se formar considerando apenas o laço afetivo, sem terem, necessariamente, a meta da procriação. Outros tipos de relação familiar, que antes estavam à margem, como as uniões homoafetivas e famílias monoparentais, reivindicam cada vez mais um lugar de pertencimento e de equivalência à família burguesa padrão.
            
Desta maneira, tanto os homens - maridos ou pais solteiros - quanto as mulheres - esposas ou mães solteiras - estão mudando sua relação com o planejamento da família e com a própria idéia de família. Eles têm desejos conflituosos em relação aos filhos. Temem ter que abrir mão de seus sonhos para cuidar deles, como as gerações anteriores fizeram. Precisam inventar uma forma própria de conciliar os cuidados com os filhos com outras exigências sociais – trabalhar, produzir, obter sucesso profissional e realizar-se sexualmente. Estes pais ficam muito tempo fora de casa e delegam a educação dos filhos a figuras de autoridade substitutivas: babás, professoras, etc.
            
O momento de encontrar os filhos é o momento em que os filhos podem tudo, pois estes pais, desinvestidos do lugar de autoridade, querem compensar a si mesmos e aos filhos pela falta de tempo que têm para ficar com eles e pela culpa que sentem por conta disso. Trabalham muito e não querem assumir o lugar de castrar ou colocar limites.
            
Há um declínio da autoridade que é marcado tanto pelos re-arranjos da estrutura familiar e social em relação ao ser pai, versus ser um pai de família, e ao ser mãe, versus ser uma mãe de família. Outras exigências se colocam aos homens e às mulheres, que podem agora decidir se vão ou não ter um filho, independentemente do matrimônio. Casar-se e ter filhos são dois acontecimentos bem separados e não são mais, como costumavam ser, os alicerces do projeto de vida da maioria das pessoas.

Segundo Paulo Ceccarelli, “(...)nascer da união de um homem com uma mulher não basta para ser filho, ou filha, daquele homem e daquela mulher. Ou ainda: colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais. O nascimento (fato físico) tem que ser transformado em filiação (fato social e político), para que, inserida em uma organização simbólica (fato psíquico), a criança se constitua como sujeito. Estes três fatos - físico, social e psíquico - guardam cada vez menos relações de dependência entre eles.” (Ceccarelli, 2007). Os papéis estão descolados da nascimento biológico da criança e precisam ser definidos de acordo com o desejo desses homens e mulheres de se tornarem psiquicamente pais a partir dessa decisão.
            
“A família tentacular contemporânea traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. (...) Ideal que não deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje, Ideal que, se não for superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível.” (Kehl, 2003).

Um abraço,
Carol